domingo, 23 de março de 2014

Parada




É, mais um dia de trabalho cansativo. Não aguento mais ficar até tarde no trabalho. Credo, que fome espero que o ônibus passe logo hoje. A rua estava deserta não havia ninguém na W3 sul, o coração dela acelerara lentamente, o medo de que algo lhe acontecesse. Nunca se sabe o que se esconde na esquina. Já eram 21h44 quando ela saiu do escritório. Este novo presidente está tirando o couro de todo mundo, pena que hoje só fiquei eu...não gosto de sair assim sozinha. Saiu, com sua mochila nas costas, os cabelos presos em um rabo de cavalo teso, calça jeans, sapatilha, camisa, óculos, cansaço, preguiça. Eu preciso mesmo é de uma boa pizza e sofá. Gostava de passar o tempo assistindo desenhos, não contará isso a muitos. Na sua idade desenhos? Sim, e por que não? Porque gente séria assiste a jornal e novela. Ok, nunca foi muito séria mesmo. Ia pensando no medo, no tempo, no desejo de que o ônibus chegasse logo. Mas ele nunca chegava. Não custa ter esperança! Chegou na parada que estava em penumbra, pouquíssima gente na rua. Engraçado, aqui é sempre tão movimentado. Olhava para a via vazia, não passará carro ou ônibus algum desde que chegou. Chegará ali às 22h, já eram 22h15. 15 minutos de espera e nenhum sinal de transporte. Virou-se para via olhando, esperando, pensando. Senhorita pode me ajudar? Ouviu a voz atrás dela, saltou pelo menos dois metros de susto, o coração acelerou. Virou-se para o lugar de onde vinha a voz. Viu o dono dela: um senhor de uns 60 e poucos anos, negro, cabelos brancos, braba curta também branca, vestido com um paletó um tanto surrado também branco, sapato estilo franciscano com os dedos de fora. Estava sentado na parada, segurando uma bengala. O primeiro pensamento da moça foi: de onde esse senhor surgiu? Será que estava tão preocupada e pensativa que não o vi sentado aqui? Não é possível. Todo o reconhecimento e pensamento não duraram mais do que dois segundos. Ela respondeu a pergunta quase instantaneamente: Desculpe o susto, estava pensativa. Como posso ajudar o senhor? O velho riu. Desculpe-me primeiro, não era minha intenção assustá-la. Só preciso de uma ajuda, a idade tem me judiado as vistas e não consigo enxergar os letreiros dos ônibus. Pode me avisar quando vier o pôr-do-sol? Sorriu a moça lembrou-se de seu avô. De onde aquele senhor deveria estar voltando assim sozinho, vulnerável. Com certeza, assim como ela, só queria voltar para casa descansar o corpo cansado no sofá, ver tevê até pegar no sono. Claro, o senhor deu sorte de me encontrar aqui. Na verdade, demos sorte juntos assim não me sinto tão sozinha e desprotegida e eu posso avisar quando o pôr-do-sol chegar. Mas confesso ao senhor que desde quando cheguei na parada não passou um só ônibus, nem carro, nem ninguém. Esse cenário está parecendo mais com filme de terror. O senhor riu. Então façamos companhia um ao outro, moça, assim o tempo passa mais rápido e poderemos em breve estar em casa. Ela se sentiu segura perto dele, o senhor mostrava um rosto sereno, uma luminosidade própria, um amor contagiante. Não soube explicar exatamente o que era, mas sentiu vontade de sentar-se junto dele, talvez fosse a lembrança de seu avô, e assim o fez.
- Qual o nome do senhor?
- Ah sim, sou Joaquim de nome. Mas a maioria me chama de vô ou de pai. Acho que a idade dá esse tipo de beneficio, a gente vai ficando velho e fica com cara de vô mesmo. Ele e ela sorriram.
- E a sua graça?
- Nossa, a quanto tempo não escuto a pergunta assim. Sou Helena de nome, mas me chamam também Lena de apelido. E também de tia quando estou entre os amigos de minha irmã. Ela riu. E o senhor por que está aqui a essa hora e sozinho?
- A senhorita Lena, posso chamá-la assim? Ela disse que sim com a cabeça. Então a senhorita Lena falou como se eu tivesse 5 anos e não 79 anos. Ele riu sacudindo o corpo magro.
Helena pensou que seu julgamento de idade fora longe. 79 ANOS? Não acreditava que aquele homem já tinha essa idade. O rosto, apesar de apresentar rugas, não denunciava tamanho tempo de vida. Ele reparou na surpresa dela, sempre achava graça quando as pessoas faziam cara de espanto por sua idade.
- Eu estava na casa de um conhecido. Vim dar uma consulta a ele que precisava de ajuda.
- O senhor é médico?
- De certa forma sim, não sou médico de corpo sou médico de alma. Sou conselheiro, aí mais um mérito que a idade me dá. As pessoas me escutam os conselhos e, em geral, mudam seus corações para melhorar suas vidas.
- Nossa que bonito o que o senhor falou.
- E no seu caso, dona Lena, deixe-me adivinhar. Olhou de cima a baixo com ar de zombaria fingindo analisar os modos, com o dedo no queixo e um bico comprido, sobrancelha levantada. Ela riu daquele senhor divertido. Deve ter ficado até tarde no escritório tentando resolver algum problema, pois o novo presidente deve estar querendo tirar o couro de todo mundo. Ficou sozinha na empresa e teve de vir sozinha para parada sonhando apenas em chegar em casa assistir tevê e comer algo.
Ela o encarou paralisada. Ele era realmente bom em análise.
- Perfeitamente! Acho que além de conselheiro o senhor é mágico-adivinho!
- Ah, foi um chute certeiro. Hoje em dia é tão fácil ver jovens como você se matando no trabalho que nem foi difícil adivinhar.
- Pois é, o novo chefe entrou a pouco e quer conhecer tudo, melhorar tudo, mudar tudo e está deixando todo mundo louco. O cerão é geral. Todos estão com olhos fundos de olheiras, e com o aspecto cansado. Espero que essa maré de serviço pesado passe logo. Hoje calhou de ficar somente eu até essa hora. Geralmente tenho companhia na parada, mas hoje foi diferente. Ái seu Joaquim, tem horas que só se quer sofá e preguiça e é assim que estou me sentindo. Queria tirar esses sapatos apertados, pedir uma pizza, sentar em frente a tevê e me largar por um tempo do mundo. Sem pensar em problemas ou preocupações. Ser só eu de coração tranquilo e cabeça leve. Há tanto tempo não sei nem mesmo o que é isso. Tenho trabalhado tanto que o desânimo é meu único companheiro em casa. Não tenho tido força nem mesmo de ler um livro, coisa que tanto gosto. Só quero dormir, só quero deitar, só quero moleza. Foi-se o tempo em que tinha ânimo de estudar, de ler mesmo, de conversar. Agora só sinto vontade de não produzir nada de deixar o tempo passar. Dizia isso olhando para o outro lado da rua, parecia mais falar sozinha do que com o velho. Desabafava sua desgostosa vida, suas frustrações, suas inquietações como que para si mesma. Tantas vezes já o fizera. Sozinha em casa, um ponto fixo no olhar, divagando sobre tudo que gostaria e não fez. Sobre seu emprego, sua vida. Amigos? Quase nenhum, quase não os via.
- Sinto uma tormenta em meu peito. Tento a mudança e não alcanço. Não vejo perspectiva de nada, não tenho força de vontade para mudar. Não consigo atingir o próximo degrau. Me sinto estagnada, cansada, deprimida. Não consigo lutar! Por vezes acho mesmo que nem quero lutar, que me acostumei a ser assim. Acomodada sem me incomodar. Ser subestimada. Não acreditar mesmo! Eu já fiz tanto e nunca fui reconhecida, por ninguém, nem por mim. Não acredito muito no meu potencial, não acho que tenha um. Quem sabe, eu não tenha competência de assumir o que é melhor para mim mesma. E o que é melhor? Isso eu também não sei, mas tenho certeza que essa vidinha medíocre que tenho vivido não é a resposta. Não sei quem sou, ou para onde eu vou. Sei o que quero, mas não tenho coragem de mudar. Vislumbro um lugar, mas ele se mostra mais distante do que uma pintura em museu. Com um espaço de segurança para que eu não posso alcançar a imagem. Não tenho tido força geradora para a mudança. Já fui tão revolucionária e ativa. Nem sei ao menos o que está acontecendo comigo. Oras – Lembrou-se que não estava sozinha em sua casa, que estava ali na rua, na parada, dizendo tudo em voz alta, para um estranho, desconhecido. Sentiu vergonha e voltou a si. Por que dissera tudo aquilo a esse homem? Deve ser a semelhança com seu avô – mas o senhor não tem nada a ver com essa história, não é mesmo? – Deu um sorriso sem graça, para tentar mudar de assunto – Desculpe-me por ocupá-lo com pouca coisa. São devaneios febris de jovem. E Helena voltou o olhar para chão, talvez por vergonha ou para mudar de assunto, ainda não sabia ao certo.
- Sabe qual é o mal da gente, Lena? – Ela o olhou como uma criança ao pai – Achar que não compartilhar os problemas com o outro é sinal de força. Se compadecer pelo problema do outro, seja amigo ou não, não é sinal de fraqueza, mas de que a pessoal tem um coração. Tem sentimento pelo outro. E compartilhando assim o que te aflige fica mais fácil encontrar a solução do que quer que seja. Compartilhar é sempre melhor do que restringir. O que quer que seja sabe? Conhecimento ou problema. Agora, vamos pensar um pouco sobre o que cê acabou de me falar – o velho olhava para o céu, para as estrelas como se lá sim estivessem as respostas – Todos os problemas que você relatou mostram uma coisa: você. Não há muito o que eu ou qualquer outra pessoa possa fazer, pois a resolução de todos eles depende exclusivamente da sua atitude. A senhorita esteve acostumada a preguiça, a procrastinação, a deixar para depois e mesmo que eu faça um discurso mostrando o quando isso é ruim e prejudicial, somente você – e bateu de leve a bengala na perna da moça – poderá trazer as soluções do seus problemas. Somente você poderá ser a força motriz a impulsionar seu progresso e melhoria. Criança, chegou a hora de se olhar no espelho e decidir como quer viver. Se o que te atrapalha é a tevê desligue-a, se o problema é o sofá não sente nele, se não consegue estudar em casa vá a uma biblioteca, se quer aprender algo novo procure onde ensine. Não quero dizer que essa será uma luta fácil, como não tem sido. Mas a vitória depende unicamente da sua ação. E a única a ser prejudicada ou ajudada será você.
Ela deu de ombros, olhava novamente o chão, apoiava os cotovelos nas coxas, e a cabeça nas mãos. Cresceu lhe um bico de menina contrariada. Sabia daquilo, mas como poderia mudar?
- Mas como poderia mudar? Não é tão difícil como você pensa e nem precisa ser assim de forma radical. Sabe qual seria um bom começo? – ela sacudiu a cabeça negativamente, ainda olhando o chão – Decidir o que você quer. Chamam de planejamento e irá ajudar você a enxergar prioridades, prazos, metas, apli...ca...bi...li...da...de – eles riram do jeito com que ele não conseguia pronunciar a palavra. Ela endireitou o corpo e disse: aplicabilidade – Essa palavra mesmo, às vezes minha cabeça pensa e minha língua não responde. Sorriu sereno. Pegue um lápis, ponha no papel o que você quer, os sonhos antigos, os novos. Pense de quanto tempo precisa o que deve ser feito. Depois monte seu tempo a favor do que quer. Confie em você, mude uma hora, depois duas, depois três. Ahahaha! Quando se vê o mundo já está se movimentando sem muito esforço. É tudo uma questão de começar, ter objetivos e não desanimar. Não vale, você assim com tanta vida gastando mal. Assim Deus se chateia! Você reclama Lena de que não é reconhecida no trabalho, o problema não é esse na verdade. Você não quer ser reconhecida, quer ser apontada. No meu tempo, e nem vai tanto tempo assim, hahaha! Nosso maior reconhecimento era o trabalho feito, pronto, concluído. Esse era nosso troféu, nossa medalha. Pense nisso, reconheça-se! Vença os obstáculos e se coloque feliz por isso! Cada milímetro conquistado será seu mérito. Não cobre das outras gentes o que você gostaria. Não dá pra pedir que os outros ajam de acordo com o que a gente acredita. É se chatear a toa! Se frustrar por pouco. Agora, se você realiza o que é seu, sua felicidade estará conquistada. Ai, ai, Lena, se esses fossem os maiores problemas do mundo estaríamos em paz uns com os outros.
Ela o olhava com um sorriso que transparecia admiração. E ele a olhava com um amor de pai que mostra como caminhar, mas deixa que os passos sejam dados sozinhos.
- Nossa, o senhor é bom mesmo!
- Ué, bom no que?
- No que faz, não é a toa que é conselheiro! Podia abrir um escritório e cobrar a consulta que seria muitíssimo rico.
- Ele a encarou com um sorriso. Não preciso de escritório, nem mesmo de ser rico, não preciso de nome, nem mesmo de paletó novo. Meus chinelos gastos me levam aonde eu preciso ir. A única coisa que eu preciso e de um coração que se abra para as palavras que esse velho tem a dizer. A mudança tem de vir de você. Eu só mostro a porta, mas você abre. - Já escorriam de seus rostos lágrimas quentes - Não quero que os filhos meus se sintam desamparados no mundo, porque não estão.
Ela, sem pensar, o abraçou em um ato de reconhecido amor. E ele assim retribuiu, e com um beijo no topo da cabeça da moça se despediu.
- Estou com os olhos melhores que os seus, olha só, já vem o meu ônibus.
Ela se virou para olhar e viu um silencioso ônibus azul vir tranquilamente pela via. O letreiro brilhante dizia pôr-do-sol. Mesmo sem dar sinal o motorista parou na parada. O velho apoiou na bengala, levantou, alinhou sua roupa.  
-Que tal estou? Dizia ele sorrindo.
- Está muito bonito, pode até arranjar uma namorada. Eles riram.
Ela se levantou abraçou o velho. Agradeceu a vinda e pediu para que aparecesse outras vezes. Ele riu alto, balançando os ombros magros.
- Mas, Lena, eu estou sempre com você! Basta me perceber os passos.
Ele virou e andou em direção ao ônibus. Não havia reparado mais o senhor andava com dificuldade, tinha uma perna torta, a bengala lhe dava apoio. Subiu a seu tempo, sentou-se na cadeira preferencial e antes de dar tchau a moça fez sinal para que ela olhasse para o pescoço. Ela pôs a mão e sentiu um colar. Abaixou a cabeça para tentar ver, era uma corrente simples, dourada, com um pingente em forma de cachimbo. Quando levantou a cabeça o ônibus já não estava lá. Haviam carros passando na via, pessoas transitando na rua. Olhou o relógio os ponteiros marcavam 22h16.