segunda-feira, 19 de maio de 2014

A imagem



Já era tarde para chegar, mas mesmo assim decidiu ir. Ah, vem pra cá. Você não está fazendo nada mesmo. Tá, tá bom eu vou. Vou tomar um banho e desço praí. Na realidade, não queria sair de casa. Mas quando amigos como ele a chamavam, tão tarde assim, era sinal de que algo não ia bem, que precisavam de ajuda. E ela não se negaria a ajudar, mesmo agora, quando já estava de pijamas cochilando no sofá. Mesmo agora quando o vento soprava tão frio e perigoso do lado de fora. Mesmo agora quando todo o seu ser estava mergulhando no mundo da fantasia mágica onde não existe dor. Mesmo agora quando toda a dura realidade se dissipava com a noite. Depois do telefonema, levou pelo menos 10 minutos para levantar do sofá. Tomou o banho, trocou de roupa, calçou os tênis. Uma incrível sensação de solidão e lástima surgiram em seu coração, em sua cabeça, atravessando o corpo como o sangue que preenche cada veia. Amarrando os cadarços do all star azul começou a pensar em sua infância, da imagem de sua mãe, da presença de seu pai. Lembrou das brincadeiras debaixo do bloco, dos amigos que não existiam. Como devem estar o Claudinho, o Thiago, o Leandro, o Adão. Por onde deveriam andar a Hanna, a Lorena, João Paulo...aquele, como era o nome? O garoto pelo qual era apaixonad[inh]a. Não se lembrou do nome. Suspirou e uma lembrança perdida nos arquivos da memória ressurgiu tão clara e real que ela conseguia sentir o cheiro do lugar. Criança, com pouco mais de 8 anos, conversando com os colegas no pátio. Discussões profundas do que seriam quando fossem velhos, adultos, com seus incríveis e inimagináveis 20 anos. Ela sempre quisera ser artista, atriz. E para uma menina na sua idade não era normal a comoção que o teatro lhe causava. Aqueles adultos que fingiam ser o que quisessem e depois voltavam a ser o que eram, para depois ser outro diferente, e as pessoas acreditavam neles, sabia? O pessoal sentado na cadeira achava mesmo que a moça no palco era a princesa. Eu quero poder ser princesa também, mas...eu gosto da bruxa também. Gosto sim, por quê? Ela é má, mas pode fazer tudo que quiser. Nem precisa usar rosa. Sabe é que eu não gosto muito de rosa, todas as meninas são rosas. Mas eu não sou igual as outras meninas sabe? Gosto mesmo de [sussurrando como um segredo] azul. E ao fim da frase se transportou novamente aos cadarços. Quase um lapso de consciência. Os óculos quase caindo pela ponta do nariz. Se ajeitou. Olhou as horas e foi embora. O carro tocava, um pouco alto, Stromae, descoberta nova que a enchera de muita alegria e francês. Embora seus lábios seguisse a letra da música o movimento se tornou bastante mecânico. Seu corpo respondia aos estímulos do som, mas sua mente estava transportada ainda pela imagem do pátio da escola, dos colegas, consegui sentir o cheiro de coxinha da cantina, o barulho dos meninos correndo, o pingar da bola de ping-pong no outro extremo do pátio, o constante ritmo das risadas de crianças, qual seria a graça? Aquele sonho de ser artista, que nunca a abandonara, mas que estava guardado, trancado, no escuro, com avisos de perigo, desenhos de caveira e uma enorme etiqueta dizendo NÃO ABRIR JAMAIS. O sonho que - Não é pra você menina, vai fazer o que passar fome? Fazer malabares no sinal? É esse o futuro que você quer? Eu não vou sustentar você a vida toda....blá, blá. - ela achou melhor abandonar, não era para ela. A lembrança aparecida trazia a sua boca um gosto de insatisfação, um gosto de "e se", um gosto de "e por que não?". Ficou remoendo os pensamentos, dirigindo com uma mão só, a outra vinha a boca, o cotovelo apoiado na janela, o vento remexendo os cabelos. E eu pensando que 20 anos já era o início da velhice! Riu disso. E por que, raios, cérebro querido, você tinha de abrir essa caixa de pandora? Chegou ao seu destino, estacionou, fechou os vidros, respirou profundamente, 1, 2, 3. Alongou as costas, girou o pescoço, o telefone tocou. Você não vem mais não? Claro que sim, já tô aqui embaixo. Vem logo, tô te esperando, beijo. Beijo. Vamos, anime-se, sonhos vão, sonhos vem, crie outros. Ah, suspirou tão profundamente que os ombros caíram, eu gostava tanto desse. Saiu do carro, entrou pela portaria, chamou o elevador. Assobiava uma canção antiga, Adoniran Barbosa, herança de seu avô. Entrou no elevador, clicou no 5 andar. A porta se fechou e ela, como uma boa mulher, virou-se para o espelho. Ajeitou os cabelos, mas olhando para o espelho, refletindo sua imagem, viu sua cara adulta tão séria como quando descobriu que amendoins não cresciam em árvores. A imagem a olhava de sobrancelhas cerradas, olhos rígidos, não acompanhavam seu movimento. Instintivamente, recuou para trás, um passo curto que a levou para a porta fechada do elevador. A imagem do espelho fez que não com a cabeça, e ela emitiu um leve grunhido de pânico, mãos espalmadas na porta. Ela, a imagem, falava pausadamente e usava a voz dela, da moça, para transmitir certa ironia. Simplesmente, não adianta querer fugir, a porta não se abrirá até chegarmos ao andar e, enquanto isso, temos tempo e, claro, você não tem outra opção a não ser me encarar. Quer dizer se encarar. A respiração dela estava mínima, o mínimo para sobreviver, embora o coração lhe tocasse como um batuque acelerado, um atabaque em pleno barra vento. Pelo menos uma vez, você tem de olhar para si, a imagem sorriu de lado. E quando fixou os olhos no espelho viu seus pensamentos mais íntimos, suas vontades reais. As paixões, as dúvidas, os prazeres, o primeiro beijo, a descoberta do sexo, a melhora dele, viu-se criança, viu-se mulher, o pai, a mãe, as repressões, as duras palavras, a ausência, a falta de paciência, o carinho cortado. Viu aquele dia no parque em que se achava feliz, viu o dia em que terminou o trabalho final da faculdade, lembrou de quando foi esquecida na escola, quando o pai disse que iria na apresentação e não apareceu, lembrou da tristeza cortante, dos amores lancinantes, da poesia que esquecera, o desenho que sempre lhe fora afim, a música que altera seu estado de espírito e, como o último ato, passou o teatro, o palco com as luzes acessas, ela no centro sendo a Joana, a Bárbara, a Medeia, a Helena, o Marcio, João...quem fosse, contato que fosse lá. Viu, por fim, uma lista de sonhos [um tanto surrada] com as datas em que eles foram anotados, alguns tópicos cortados, outros com asteriscos. Uau, nem sabia que tinha tanta coisa para fazer. De volta a imagem dela olhando para ela, braços cruzados abaixo dos seios, um olhar de obviedade. Então, não dava para ter sido mais clara, não é? Ela sacudiu a cabeça fazendo que não. Então faça um favor a nós duas, ok, e termina logo com essa lista. O elevador chegou ao seu destino. Uma leve sacudida do andar a deixou assustada, fechou os olhos apertados. Eu devo estar ficando maluca. Não tinha coragem de abrir os olhos, estava paralisada no mesmo lugar. A porta aberta atrás dela, suspirou profundamente, abriu len..ta...men...te...o olho esquerdo. Percorreu o elevador com ele, depois abriu o direito, encarou o espelho. A imagem refletida a imitava novamente. CARALHO, foi o único pensamento que a atingiu. A tranca do 503 se abriu. Minha filha, você demorou tanto que pensei que tinha pego um elevador para a lua. É, tipo isso. 

domingo, 11 de maio de 2014

Mamis



Primeiro, desculpa por desaparecer, mas fiquei [incrivelmente] sem computador e não pude postar no blog. Sei que você vai entender, logo, logo normalizo a situação. Enfim, hoje é um dia especial [não só para o comércio] e acho que vale uma lembrança. Hoje é um daqueles dias que ou você vai para cozinha fazer algo especial, ou leva sua mãe para o restaurante mais chique e caro da cidade. Como eu ainda não fiquei rica, fiz almoço lá em casa. E sim, esse foi um ato surpreendente já que não sou nem um pouco fã dessa atividade [mas confesso que gostei muito de fazê-la hoje]. Nada de muito sofisticado, nem nada. A boa e velha lasanha. E foi ela que me fez refletir sobre o dia das mães e as mães de forma geral. Bom, eu sou semi-vegetariana [isso quer dizer que eu ainda como peixe] e minha mãe é uma carnívora inveterada. Mas, apesar disso, fiz uma lasanha de abobrinha. Felizmente saiu tudo certo e todos adoraram. Porém esse simples ato de mi madre abdicando da "bendita" carne por mim...me fez refletir enquanto cozinhava calada. Acho, e digo acho porque não sou mãe, que ser mãe é isso mesmo no fim das contas, é ser empossada da função eterna de abdicar do que é seu pelo o outro. Falo de mãe, mãe mesmo, não daquelas que adquiriram a função, mas não a exercem. Mãe [de verdade] é se doar ao outro, doa-se o corpo para ser rasgado e alterado durando 9 meses, com marcas eternas, com mudanças implacáveis. É doar a atenção total, doar o sono, doar o cuidado. É doar o sorriso, é doar o conhecimento, é doar agonias [por que ela está chorando?]. É doar a preocupação, é doar o bolso, é doar o presente [primeiro ela, se der compro para mim]. É doar o espaço, é doar os conselhos, é doar os micos, é doar a distância, é doar o tempo [nossa como ela está crescendo]. É doar a saudade, é doar as opiniões [mesmo que contrárias], é doar as brigas, é doar as reconciliações, é doar a espera [você vem dormir em casa?]. É então, enfim, doar o desapego. Doar o que é seu [tão precioso e frágil] a um outro [estranho], que vai tomá-la pelos braços e fazer uma nova família. Por mais que pareçam chatas e irritantes, e por vezes sabem sê-las, não há mal no fundo. Estão aprendendo, ao mesmo tempo que nós, a atuarem na função: acertando, errando, repetindo, mudando. E por mais enlouquecedoras que pareçam [e digo são] é uma loucura cadente, com ritmo de coração, de abraço apertado, de dormir no colo, de carinho. Mãe é essa 'coisa' inexplicável, contraditória, antagônica, perturbadora e incandescentemente divina. Te amo, mamis!