quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Hue hue hue aqui é BR!



Hoje não vou contar realmente uma história, quero contar o que aconteceu comigo na terça-feira. Se bem que, por mais que eu diga não ser uma história, tudo em nossa vida é ou será história. Enfim, era uma vez eu, na terça-feira dia 16/09 no Shopping Iguatemi. Ganhei um sorteio para assistir ao filme Isolados graças ao Jurassicast (aliás se você não conhece os caras, dê uma olhada no site deles vale super a pena e ainda pode concorrer as pré-estreias cinematográficas [http://jurassicast.com.br/]), então ganhei ingresso duplo para ir com meu benzinho nessa tal shopping center e ainda tinha direito a pipoca e refri! Para que você entenda melhor a história veja o trailer aqui: https://www.youtube.com/watch?v=mzVAwEYAxx4. Você percebeu que não é só um filme brasileiro é um filme de suspense/terror brasileiro. É um filme diferente do que estamos acostumados a assistir, não é uma comédia besteirol como a maioria. É uma tentativa nova de fazer cinema brasileiro e foi o que mais me interessou, por isso tive mais vontade de assistir. O que eu achei do filme não importa aqui, na verdade não é a respeito do filme que quero falar, mas da reação ao filme nacional que os próprios brasileiros, e como sou de Brasília restrinjo à percepção dos brasilienses, têm do nosso cinema. Antes de ir ao cinema quando eu comentava com alguém sobre o filme a resposta mais certeira era: mas é nacional. Eu ainda não consigo dimensionar essa resposta, o que há de tão terrível no filme nacional? Porque, até onde eu sei, como filmes estrangeiros existem os bons e ruins, entenda que nacional não é e nem pode ser sinônimo de ruim. Filmes como Lisbela e o prisioneiro (2003) e Dois coelhos (2012) são brasileiros de gêneros diferentes e que eu amo assistir! Que são primores, cada um a seu modo. Com roteiros bem trabalhos, enredo, história, cenário. E se por acaso você não os viu, veja-os não vai se arrepender. Voltando ao cinema, por todo o filme, a maioria dos espectadores o encaram como uma piada, absolutamente nada estava bom, nada estava inteligente, nada estava nada. Eu tenho as minhas impressões do filme também, e acho que ele deixou uma história solta, era preciso desenvolver melhor alguns pontos, mas daí achar que tudo no filme é ruim, eu acho demais. São dois pesos e duas medidas, para filmes estrangeiros, e mais do que estrangeiros americanos, o nível de percepção e de exigência é mínimo. Filmes muito, extremamente ruins em questões de enredo e história se tornam obras primas por se falar inglês. Nos filmes nacionais reclamam das cenas de sexo, reclamam de palavrões, deve ser porque isso só acontece aqui, não é mesmo? Ou porque a visão dos cinéfilos fique um pouco turva quando se vê nacionais. Sinceramente, me irritou, só isso. Uma irritação que vem do fato de nós, como brasileiros que somos, nos desprestigiar de tudo que é nosso, de nos colocarmos em um papel tão pequeno. É sempre aquela carinha de "oh, coitadinho é brasileiro". Não é tanto o filme, mas é a postura que assumimos perante ao que é nosso. Não entendo porque a percepção geral se alia a filmes de comédia nacionais, como se o nosso cinema só pudesse oferecer esse tipo de filme. Realmente é só isso que podemos fazer, comédia? Drama não? Suspense não? Aventura não? O brasileiro está fadado ao riso desmedido, solto, frouxo e sem conteúdo. Não é tanto pelo filme, mas pela noção de que as capacidades dos nossos diretores, produtores, roteiristas, atores, cenógrafos só valem para fazer comédia afinal o brasileiro é um povo feliz e ri da própria desgraça a todo tempo, não é mesmo? Não sei bem, mas ao sair do cinema fiquei com um misto de "nossa" com "poxa vida", penso que talvez eu esteja muito sensível ao notar essas reações, quem sabe ninguém esteja depreciando as nossas produções, talvez eu só veja o lado ruim das coisas. Ou, quem sabe, talvez, de tudo o que eu disse alguma coisa tenha um sentido real e você esteja pensando: mas é nacional. 


quinta-feira, 11 de setembro de 2014

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A semana era sempre cansativa, sempre. O trabalho era sempre parecido, sempre. O sapato apertava o mindinho, sempre. Ela reclamava da vida, sempre. Mas na sexta-feira, sempre vinha a alegre expectativa do sábado. Ah, o sábado! Amanhã será um dia diferentemente igual, mas sábado é sábado. As sextas-feiras sempre a enchiam de ânimo, pois no sábado, sagradamente, escrevia para um amigo que se fazia distante a algum tempo. Chegou em casa normalmente, pegou a correspondência normalmente, deixou-a na mesa de entrada normalmente, trocou-se normalmente, comeu normalmente, deitou-se normalmente.
- Frida, venha para cama já estou muito cansada vou apagar tudo.
E Frida foi devagar para a cama grande de casal fazer companhia a Laura que já tinha apagado as luzes deixando somente o abajur do criado mudo ligado. Deitou de meias e pijama, se enfiou embaixo do cobertor, Frida se enrolou nela mesma no canto da cama. Antes de deitar e pegar no sono Laura afagou a companheira e lhe desejou boa noite. Apagou o abajour pensando na história daquela semana, o que iria contar, como contar e o pensamento embalou o sono, os olhos se fecharam e o mundo do Sonho foi aberto. Lá os portões eram largos e de ouro igualmente aberto para todos. E sonhando ela se viu em um campo, com montes pequenos, médios, que tomavam o horizonte. Tudo muito verde, tudo muito claro, tudo muito lindo. O céu era bem azul, com nuvens que andavam, no chão uma imensidão de flores. Estava com um vestido branco com pequeninas flores azuis bordadas, descalça sentia a grama acariciando os pés. Admirando a beleza daquela visão, percebeu que no terceiro monte, ali a uns 500 metros havia uma mesa de madeira com um único lugar, e alguma coisa em cima dela. Foi correndo, como uma criança, saber o que tinha lá. Quando pisava o chão borboletas alçavam voo e a envolviam, era uma dança natural e inocente. Chegou a mesa sem muito esforço e se deparou com uma máquina de escrever com um papel em branco. Milimetricamente calibrada para que alguém iniciasse a escrita. Olhou para um lado e para o outro, só havia o paraíso, ela e a máquina. Sentou-se na cadeira de madeira. Era acolchoada com um assento e encosto vermelho, reparou que o braço e a perna da cadeira eram talhados a mão com rigor e delicadeza. Eram formas que desconhecia, mas lhe parecia a coisa mais linda do mundo. Ajeitou-se na cadeira, puxou-a para perto da mesa, colocou as mãos nas teclas da máquina sentindo sua textura, fechou os olhos e respirou profundamente. Ouviu uma música ao fundo e quando abriu os olhos era o despertador das 7h40. Pensou com certa irritação: Não acredito! Desligou o alarme e tentou voltar aquele lugar no sonho, não deu certo. Às 8h, em ponto, iniciou sua rotina sabadal. Levantou-se, alimentou Frida, ligou o som, foi para o banho. Sábado o banho demorava mais, lavava os cabelos, cantava no chuveiro, passava os cremes frescos no rosto. Demorava 15 minutos sendo 5 de banho real e 10 de diversão. O sonho da noite anterior não lhe saia da cabeça, pensava: o que queria dizer? Um campo, mesa e máquina de escrever, eu hein? No som tocava Pedro Luis e a Parede e, no banho, ela fazia a melhor e maior performance para o público que consistia nas carinhas sorridentes feitas no box embaçado e sua gata, Frida, que parecia não gostar no show, pois estava sentada de costas para ela:
- Nossa Frida, você é uma ranzinza mesmo! - A gata nem se moveu.
Saiu do banho com os cabelos compridos enrolados na toalha, outra toalha enrolada no corpo. Cantava a plenos pulmões. Passou pela mesa da entrada para olhar a correspondência seguindo sua rotina sagrada de sábado. Olhou as contas, passando uma de cada vez, viu um envelope diferente, parecia uma carta, certamente era do amigo distante, todo sábado ela se preparava para ler a carta e enviar a resposta. Às vezes, escondia a carta no fundo do bolo de contas, demorava a abrir, fingia não saber que lá estava só para poder se surpreender com a carta. Abriu vagarosamente o envelope, sempre o abria de olhos fechados, gostava de apreciar aquele momento, sentia a textura do papel, pensava por quantas mãos passaram, pensava no seu amigo e quando abria os olhos já estava com o papel aberto em mãos. Quando abriu os olhos desta vez viu que não era a carta do amigo, estava digitado ao invés de manuscrito e não tinha o desenho de jasmim no canto direito. Leu as palavras, levou a mão a boca, tinha no rosto uma expressão de desespero. Não pode ser, não pode ser, não pode!! Pensava enquanto lia. Era verdade, a carta avisa do falecimento do amigo por um ataque fulminante do coração. Sentou na varanda da casa e chorou, um choro mudo. Não acreditava que aquelas palavras eram verdade, sentiu-se perdida, um sentimento de traição:
- Você disse que eu primeiro, seu mentiroso.
Chorava mais pelo susto do que pelo fato em si, sempre teve uma visão clara e serena da morte. Tinha sua própria fé. Quem a visse não diria que era choro, quem sabe uma alergia a fizesse lagrimejar, a água escorria sem sinal de desespero, não havia terror, era somente um choro. Um choro  de desculpas, talvez, por não o ver a tanto tempo. Um choro de lamento quem sabe de saber que não veria mais o sorriso divertido percorrendo o rosto familiar dele. Um choro de transbordamento de saudades. Frida reconheceu os olhos da companheira e se alojou em seu colo, uma bola de pelo que dizia no silêncio: me acaricie e deixa a dor passar, vamos compartilhar para ir embora logo. Acariciando Frida, fungando de vez em quando, a mão na boca, a água escorrendo. Essa cena durou pouco mais de uma hora, quando as lágrimas pararam de descer deixou que o vento secasse seus rosto. Segurou a cabeça de Frida, deu-se um beijo e disse:
- Vamos entrar, estou com frio. E a vida...continua, não é mesmo?
A gata se espreguiçou em seu colo e pulou para o chão, roçou em suas pernas e entrou casa a dentro correndo para o arranhador. Ela ainda se abraçou, olhou para o céu e murmurou:
- Depois me conta como é aí.
Laura então deu prosseguimento ao seu dia e embora a ideia da perda martelasse na cabeça vez ou outra tentava não se apegar ao impossível e seguir. Mais tarde, ao começar a noite, recebeu um telefonema. Do lado de lá da linha era dona Antonia, mãe do amigo, fungando, voz miúda, contando o ocorrido, disse que o enterro só poderia ser feito na quinta. Laura disse que iria, mas mentalmente sabia que não.
- Tudo bem, se a senhora precisar de alguma coisa me avisa tá?
- Sabe minha filha, estou precisando sim. Você pode vir aqui amanhã...é, que...eu tenho de ajeitar o quarto que era do meu me...me...menino - E o choro rompeu a garganta da velha - e não dou conta e fazer isso, pelo menos não sozinha. Você pode vir?
Laura respirou fundo antes de responder, sabia que a senhorinha precisava dela, mas não se sentia preparada à perceber que perdeu de vez o amigo.
- Claro dona Antonia, claro. Amanhã chego às 10h, pode ser?
- Claro minha filha! Agradeço imensamente!
Colocou o telefone no gancho e ficou olhando fixamente para ele, parecia esperar por uma ligação. Olhando, olhando, olhando, lembrou do sonho, o que será que aquele sonho dizia? Que sonho mais estranho? Perdida no desconhecimento do sonho ficou olhando para o telefone e só voltou a si quando Frida, querendo um pouco de atenção, pulou em cima do telefone. Laura assustou com a ação recuando para trás:
- Ahh, depois o pessoal fala que gato não é carente - passava a mão pelo dorso da gatinha - ai, ai, me diz Frida pra quê que eu me meto nisso?
A noite se aprofundou, colocou o pijama, a meia, ligou o abajour, convocou Frida para a cama, deitou a cabeça no travesseiro, desligou toda a luz e um pequeno riozinho molhou seu travesseiro trazendo o sono à barco.
Lá estava ela novamente, no mesmo lugar, mesmos montes, mesmo verde, mesma beleza, mesma clareza. Estava também a mesa, a cadeira tudo em madeira. O objeto que não reconhecerá da primeira vez mais agora sabia que era uma máquina de escrever. Ela correu para o lugar, as borboletas reapareceram. Chegou, sentou, sentiu a madeira da mesa, passou as mãos nas teclas da máquina. Olhou para o horizonte e reparou um objeto que não tinha visto antes, lá em frente longe dela a uns 400 metros.
- O que é isso? Parece um, sério mesmo?. Parece uma caixa de correio daquelas de desenho, tem até a bandeirinha vermelha. Mas para quê uma caixa de correio se não tem casa ali.
Ouviu uma música ao fundo e quando abriu os olhos era o despertador das 7h40. Pensou com certa irritação: Não acredito! Desligou o alarme e tentou voltar aquele lugar no sonho, não deu certo. Às 8h  em ponto acordou - De novo esse sonho? - seguiu a mesma rotina de sempre. Às 9h40 foi ver dona Antonia. Ela não morava longe de sua casa e por isso foi a pé mesmo, eram 3 quadras martirizantes que a levavam para uma realidade um tanto dura demais, um tanto real demais, um tanto irreversível demais. Ao passar por aquelas ruas, lembrou vivamente da infância, ruas percorridas tantas vezes pela bicicleta, pela bola velha, pelos pés descalços. Sorria silenciosamente das lembranças, traquinagens de meninos. Ela, o amigo, dona Antonia, sua mãe Lucinda. Chegando a casa de destino não chamou a dona de primeira. Primeiro gastou uns minutinhos olhando admirada a arquitetura colonial do sobrado. A casa era branca, um tanto suja pelo anos de vida, mas dispensava um glamour que era impossível de não ser reparado. Tinham dois leões nos cantos guardando a casa e um jardim revestido de rosas e jasmim. Laura ficou fascinada pelos jasmins desde a primeira vez que os viu e se tornou a flor preferida dela, não que as rosas fossem feias tinham sim sua majestade, mas o jasmim tinha uma sutileza de toque, uma delicadeza, uma simplicidade, uma calma e um cheiro incomparáveis. Depois de pensar um pouco, bateu palmas para chamar:
- Dona Antonia?
Ouviu os barulhos da casa e esperou a porta se abrir.
- Ainda bem que você chegou minha filha, estou passando café novo. Venha, entre você sempre foi de casa!
Subiu os cinco degraus que separavam o jardim da casa e entrou. O café já perfumava o ambiente e a mesa da cozinha estava posta com todos os biscoitinhos e mimos da infância:
- Nossa a senhora não perde a mão, mas parece que um batalhão virá comer conosco.
A mesa estava coberta por uma toalha branca rendada, os pratos e xícaras eram conjuntos tão lustrosos que pareciam ter saído da caixa naquele instante, os talheres dispostos simetricamente. Na mesa, em cestos de palha com babadinhos de lado, havia uma imensidão de sabores: rosca de doce de leite, de canela, rocambole de goiabada, biscoito e pão de queijo, peta, leite, pão caseiro, queijo e requeijão vindos da roça.
- Senta minha filha, só vou terminar o café e trago.
- Sim, senhora.
Laura reparou o rosto abatido na senhora e se lembrou do porquê estava lá, sentou-se na mesa posta para dois. Olhou os arredores da cozinha, tudo que já viveu ali. Se viu menina correndo a procura do amigo que se escondia tão bem que ela desistia de procurar e ia comer as guloseimas que dona Antonia fazia questão de fazer. Uma vez deixou o amigo plantado no esconderijo por tanto tempo que ele se embraveceu e disse que nunca mais ia brincar disso. Ainda bem que o "nunca mais" infantil é só até a fúria passar o que não leva mais do que 5 minutos - Esconde-esconde - pensou- nunca tive paciência para isso. 
- Aqui está o café. Adoro esse cheirinho de café novo. Você já comeu?
- Não, ainda nem tinha tomado café-da-manhã. 
- Isso é bom, porque a mesa está farta!
As duas comeram sem trocar muitas palavras, cada uma pensando no que fariam juntas, cada uma com a memória do amigo/filho, cada uma com sua saudade desmedida, cada uma com um medo danado de mexer no que, agora, estava assim sem dono. Terminaram de comer e em silêncio sacudiram a cabeça uma para a outra fazendo um gesto de sim. Levantaram-se e a velha segurou a mão de Laura parte para guiá-la ao quarto conhecido, parte para ter forças de ir até ele. Entraram, desataram as mãos e Laura, que estava três passo a frente da velha, reparou que tudo estava no mesmo lugar desde do dia da partida, tudo muito limpo e cheiroso, mas nos mesmo lugares. Olhou para trás a busca da senhora e a viu escorada no portal chorando de cabeça baixa, Laura com a mesma vontade se controlou para a ajudar a velha a não sofrer. 
-Oh, dona Antonia, eu sei que é difícil. Eu sei.
Antonia respondia entre fungadinhas curtas.
-Minha filha, eu nunca esperava ficar nessa terra sozinha sem meu menino. Isso não é nem natural...sinto como se metade de meu coração, simplesmente não batesse mais. Como se eu não tivesse propósito de ser aqui. Sou velha, já não trabalho mais, já não tenho menino para criar. Só sou eu e meu jardim, eu e a casa, eu e o vento, a poeira. Do que vale ficar aqui se não tenho mais preocupação com o coração dos outros, se a parte do meu coração não bate mais?
Laura só olhava para a Antonia, o que dizer a uma velha que, no fim das contas, estava de certo modo certa? O que ela poderia dizer para confortar uma mãe cujo o coração só batia em função do filho que era sua alegria? Ela definitivamente não pode dizer nada, mas, por puro impulso, abraçou aquele corpo abatido, fraco, pequeno, magro e triste. Aninhou Antonia nos braços como se agora ela, Laura, fosse sua mãe, como se ela fosse a mãe do mundo a trazer a paz ao coração dos que sofrem. 
- Dona Antonia - dizia ainda abraçada - eu não tenho muito a oferecer, mas se a senhora quiser pode morar comigo, ou passar uns tempos lá em casa. Assim não fica vivendo aqui, lugar que traz tanta lembrança...ah e lá em casa a senhora vai ter uma filha para cuidar, minha gata. Pense num bicho arteiro que não para quieto, tenho certeza que vai ficar com a mente ocupada.
A velha deu uma risadinha em meio ao choro.
- Obrigada minha filha vou pensar na oferta.
E ao dizer isso olhava nos olhos de Laura e se podia ver gratidão.
- Então vamos começar a arrumar esse lugar. Como a senhora quer fazer? Quer guardar alguma coisa?
- Vamos assim, as roupas e sapatos que ficaram vão para a doação. Assim como os livros, os cds. Aliás se minha filha quiser algum pode ficar. Depois já arranjei uma casa de crianças para doar a cama, o armário, a tevê. A única coisa que quero mesmo são as fotos dos porta-retratos e aquele cordão com o dente de tigre que ele usava.
- Então tá, já vi que a senhora colocou as caixas aqui, vamos arrumar! Mas para dissipar a tristeza vou colocar os cds dele para tocar, assim lembramos momentos felizes e ele escuta música boa do lado dos mortos.
E assim foi feito, colocou rock pra tocar e foram tirando as coisas do cabide, das gavetas, das prateleiras. E a cada peça que ia para a caixa vinha um história que vazia as duas rirem. Histórias antigas que mostravam uma pessoa alegre e despreocupada, histórias que mostravam um rapaz sincero e, por vezes, inconsequente. Histórias que reconfortavam as duas como se a vida daquele ser, com as palavras das duas, o mantivesse vivo, ali olhando para elas, contando suas próprias histórias. Laura passou o dia com Dona Antonia, entre arrumação do quarto e quitutes sempre ao som da lembrança dele.
No almoço, estrogonofe de frango, Laura contou a Dona Antonia, entre uma garfada e a alegria do sabor, o sonho da máquina de escrever.
-...e aí eu vi uma caixa de correio, mas não sei o que quer dizer e nem sei dizer o porque não consigo escrever na máquina de escrever. 
- Estranho né? Quem sabe você tenha que passar uma mensagem para alguém, mas ainda não está preparada para escrever. Não sei, mas a caixa de correio deve estar lá pra você mandar alguma coisa para alguém. 
- Hum, eu não estou preparada porque nem sei pra quem é. Sorriu a menina.
Ao final do dia, caixas fechadas, trabalho feito. Alguns livros e cds a mão, Laura se despediu da velha que parecia estar melhor. As bochechas lhe iam mais coradas, talvez o coração tenha aumentado a intensidade do toque.
Voltou para casa com lembranças que nem sabiam ser suas e histórias novas para lembrar. Chegou exausta do dia, abriu a porta e Frida a recepcionou com um misto de saudade e fome. 
-Oi boneca! Já sei, esqueci da sua comida. 
Os olhos de Frida confirmaram e a pequena companheira saiu correndo para a tigela. Alimentou a pequena faminta e se despiu para um tão sonhado banho. Ficou lá por vinte minutos, a água escorrendo quente em suas costas dava uma sensação de alívio, enquanto estava no box sua mente refletia o que Dona Antonia tinha dito sobre o sonho: mensagem para alguém. Mas quem ia querer receber minha mensagem, ainda mais em sonho, pensava naquele argumento sem entender direito. Sentou-se um pouco a frente da tevê assistiu qualquer coisa que passava, Frida enrolada ao seu lado. 
- Ahhhhhhhh - dizia enquanto se espreguiçava - vamos para cama sim! Ainda bem que amanhã é feriado.
E assim foi, pijama, meias, cobertor, abajur ligado, Frida enrolada nela mesma no canto da cama, abajur apagado, sono profundo.
E lá estava ela, nos montes verdes, no lugar claro, as borboletas, a mesa, a cadeira, a máquina de escrever, o papel. Olhou para frente e a caixa de correio de desenho ainda estava lá. 
- Ai, ai, ai! Como é que vou mandar alguma coisa para lá? E quem é mesmo que vai receber isso?
Sentou na cadeira de madeira e apoio os cotovelos na mesa, as mãos segurando o rosto e um bico imenso como de uma criança contrariada. 
- Mas que droga, vou morrer aqui sem saber o que fazer.
Olhava aquela caixa de correio ao longe com uma raiva infantil maldizendo o pobre objeto que nem ao menos podia se defender. Até que avistou alguma coisa em movimento, indo em direção a caixa. Era um homem alto vestindo um terno azulado e gravata borboleta. 
- Oxi, quem é...
E não conseguiu terminar a frase, porque viu mesmo de longe, mesmo sem tanta nitidez, que o rapaz alto era o seu amigo. 
- Jorge!!! 
Gritou se levantando da cadeira e começou a correr em direção ao amigo. Enquanto tentava correr via Jorge fazer que não com as duas mãos e a cabeça reparou que mesmo depois de tanto correr não saia do lugar estava lá ao lado da mesa. 
- Eu não tô acreditando que o Jorge está bem ali e eu nem posso ir lá falar com ele. Mas que droga!
Sentou-se novamente com os braços cruzados e um bico maior ainda. Olhava para Jorge que parecia rir da sua cara.
- Continua um ridículo, mesmo depois de morto!
E ele fazia movimento com o dedo apontando para a caixa de correio freneticamente. Ainda levou uns instantes para que Laura entendesse: "Estranho né? Quem sabe você tenha que passar uma mensagem para alguém, mas ainda não está preparada para escrever. Não sei, mas a caixa de correio deve estar lá pra você mandar alguma coisa para alguém". 
-Claro! Dona Antonia, a senhora é uma linda!!
Endireitou-se na cadeira, passou as mãos nas teclas e parou puxando as mãos para si. Tá - pensando - mas o que eu vou escrever? O que eu iria escrever no sábado? A mão voltou as teclas e tatibitati começou.

Mundo do sonhos, algum dia/certo mês/anoenoino

Querido Jorge, 

Querido não que isso é coisa de quente fresca, insuportável Jorge. Essa semana aconteceram várias coisas chatas como sempre te conto. É sempre assim por essas bandas daqui. Você sempre vem com histórias mirabolantes de como conheceu um milhão de pessoas, e lugares, e coisas e eu? Bom eu fico aqui ouvindo suas histórias e imaginando se eu teria a coragem de sair pelo mundo conhecendo tanta coisa que nem sei. Será que eu, pacata moça da cidade alta, conseguiria me aventurar pelo mundo sem saber direito o que encontrar? Eu que sempre, ou quase sempre, tenho um plano bem bolado, bem simétrico, bem bonito a seguir? Será que eu saberia me lançar ao desconhecido do mundo? Who knows? O único desconhecido que venho conhecendo é o mais íntimo de mim e, sinceramente, não tem sido fácil. Às vezes me deparo com buscas e pensamentos que me parecem estranhos, que parecem não serem meus. Talvez os anjos teem me soprado para ver se consigo atingir a direção certa, ou quem sabe o demônio é meu amigo e tem me mostrado caminhos tão acertados...só para implicar com Deus e mostrar que ele também é legal. As bandas brasileiras continuam com as mesmas crises, políticos, religião, preconceitos sem medida e me vem aquela vontade de ir embora. Me parece que a cada passo dado para frente, um salto enorme é feito no sentido inverso. Você sabe que não sou pessimista e continuo a não ser, mas vai dando aquele abatimento, aquela impaciência. As discussões não progridem, as ideias não diversificam, as pessoas parecem mulas de carga. "O bispo mandou eu vou fazer, o pastor mandou eu vou votar, o papa falou eu vou me jogar da ponte com uma pedra amarrada no pé, o pai de santo disse eu vou sair arrebentando a cara dos outros", sério esse povo só tem cabeça para enfeitar. Sempre foi assim, pensar dá trabalho não é mesmo? Mas deixemos as besteiras de lado. Ah, sim!! Aconteceu uma coisa muito estranha no sábado, um amigo meu morreu. Pois é! Foi um susto danado pra todo mundo. Eu me senti terrivelmente perdida, fazia anos que não o via embora soubesse tudo de sua vida, embora nos correspondêssemos quase semanalmente. Ontem estive com a mãe dele e, por mais que achasse saber muito dele, descobri histórias engraçadíssimas a respeito da infância e personalidade daquele menino. É engraçado pensar que por mais próximo, por maior que seja o contato, nunca se sabe ao certo quem é a pessoa que nos acompanha. Mesmo com todo o tempo de convívio as surpresas aparecem. Que pretensão achar que conhece o íntimo de um outro ser, se nem mesmo ele sabe? Nossa, como estou filosófica. Vou até pegar meu cachimbo de bolhas e meu monóculo e vamos falar a respeito da essência do ser, que tal? Quem sabe consigamos esmiuçar o humano em sua superfície mais rudimentar e sensível, ou (e o que é mais provável) nos embriagaremos de brigadeiro deixando a discussão para depois e vendo um filme. Aliás, ainda não assisti Rock Balboa e aquele quebra-cabeça continua no meu armário te esperando. Como está o apartamento aí? Na última carta me disse que tinha dado chabu no aquecedor. Se bem que me parece...sua casa é outra agora. Mande-me notícias sempre que puder, toda vez que vier aqui te escrevo, ok? Sem melosidades, mas cheia de beijos e abraços! 

Laura - Lariema

Quando terminou a carta ela sumiu e a caixa de correio de desenho levantou a bandeirinha vermelha, Jorge pegou o papel que estava fechado em envelope. Laura acho aquilo lindo, felizmente poderia continuar com as cartas que tanto lhe davam prazer. Ao lado da mesa em que estava sentada apareceu também, brotada do chão, uma caixa de correio de desenho, só que a sua bandeirinha era roxa.
- Claro, minha cor predileta. 
E gritando para Jorge:
- Deixa de ser preguiçoso e manda logo alguma coisa.
A bandeirinha roxa se levantou, ela abriu a caixa de correio e lá havia um jasmim com um bilhete.
"Oras, nunca fui preguiçoso! Cuide de Dona Antonia pra mim, ela precisa de todo seu carinho. Diga-lhe do sonho, diga que estou bem, só com um pouco de saudades. Diga para ela achar outros tantos meninos para fazer o coração bater novamente. Dê a ela um motivo de continuar. E quanto a você, menina perdida, sem melosidades, mas cheio de beijos e abraços! Já mando mais notícias." 
E naquele dia ela acordou, não pelo despertador, mas pelo cheiro forte e doce de jasmim. E naquele dia ela acordou com certezas, Jorge não estava exatamente morto.