É, mais um dia de trabalho
cansativo. Não aguento mais ficar até tarde no trabalho. Credo, que fome espero
que o ônibus passe logo hoje. A rua estava deserta não havia ninguém na W3 sul,
o coração dela acelerara lentamente, o medo de que algo lhe acontecesse. Nunca
se sabe o que se esconde na esquina. Já eram 21h44 quando ela saiu do
escritório. Este novo presidente está tirando o couro de todo mundo, pena que
hoje só fiquei eu...não gosto de sair assim sozinha. Saiu, com sua mochila nas
costas, os cabelos presos em um rabo de cavalo teso, calça jeans, sapatilha,
camisa, óculos, cansaço, preguiça. Eu preciso mesmo é de uma boa pizza e sofá.
Gostava de passar o tempo assistindo desenhos, não contará isso a muitos. Na
sua idade desenhos? Sim, e por que não? Porque gente séria assiste a jornal e
novela. Ok, nunca foi muito séria mesmo. Ia pensando no medo, no tempo, no
desejo de que o ônibus chegasse logo. Mas ele nunca chegava. Não custa ter
esperança! Chegou na parada que estava em penumbra, pouquíssima gente na rua.
Engraçado, aqui é sempre tão movimentado. Olhava para a via vazia, não passará
carro ou ônibus algum desde que chegou. Chegará ali às 22h, já eram 22h15. 15
minutos de espera e nenhum sinal de transporte. Virou-se para via olhando,
esperando, pensando. Senhorita pode me ajudar? Ouviu a voz atrás dela, saltou
pelo menos dois metros de susto, o coração acelerou. Virou-se para o lugar de
onde vinha a voz. Viu o dono dela: um senhor de uns 60 e poucos anos, negro,
cabelos brancos, braba curta também branca, vestido com um paletó um tanto
surrado também branco, sapato estilo franciscano com os dedos de fora. Estava
sentado na parada, segurando uma bengala. O primeiro pensamento da moça foi: de
onde esse senhor surgiu? Será que estava tão preocupada e pensativa que não o
vi sentado aqui? Não é possível. Todo o reconhecimento e pensamento não duraram
mais do que dois segundos. Ela respondeu a pergunta quase instantaneamente:
Desculpe o susto, estava pensativa. Como posso ajudar o senhor? O velho riu.
Desculpe-me primeiro, não era minha intenção assustá-la. Só preciso de uma
ajuda, a idade tem me judiado as vistas e não consigo enxergar os letreiros dos
ônibus. Pode me avisar quando vier o pôr-do-sol? Sorriu a moça lembrou-se de
seu avô. De onde aquele senhor deveria estar voltando assim sozinho,
vulnerável. Com certeza, assim como ela, só queria voltar para casa descansar o
corpo cansado no sofá, ver tevê até pegar no sono. Claro, o senhor deu sorte de
me encontrar aqui. Na verdade, demos sorte juntos assim não me sinto tão
sozinha e desprotegida e eu posso avisar quando o pôr-do-sol chegar. Mas
confesso ao senhor que desde quando cheguei na parada não passou um só ônibus,
nem carro, nem ninguém. Esse cenário está parecendo mais com filme de terror. O
senhor riu. Então façamos companhia um ao outro, moça, assim o tempo passa mais
rápido e poderemos em breve estar em casa. Ela se sentiu segura perto dele, o
senhor mostrava um rosto sereno, uma luminosidade própria, um amor contagiante.
Não soube explicar exatamente o que era, mas sentiu vontade de sentar-se junto
dele, talvez fosse a lembrança de seu avô, e assim o fez.
- Qual o nome do senhor?
- Ah sim, sou Joaquim de nome.
Mas a maioria me chama de vô ou de pai. Acho que a idade dá esse tipo de
beneficio, a gente vai ficando velho e fica com cara de vô mesmo. Ele e ela
sorriram.
- E a sua graça?
- Nossa, a quanto tempo não
escuto a pergunta assim. Sou Helena de nome, mas me chamam também Lena de
apelido. E também de tia quando estou entre os amigos de minha irmã. Ela riu. E
o senhor por que está aqui a essa hora e sozinho?
- A senhorita Lena, posso
chamá-la assim? Ela disse que sim com a cabeça. Então a senhorita Lena falou
como se eu tivesse 5 anos e não 79 anos. Ele riu sacudindo o corpo magro.
Helena pensou que seu julgamento
de idade fora longe. 79 ANOS? Não acreditava que aquele homem já tinha essa
idade. O rosto, apesar de apresentar rugas, não denunciava tamanho tempo de
vida. Ele reparou na surpresa dela, sempre achava graça quando as pessoas
faziam cara de espanto por sua idade.
- Eu estava na casa de um
conhecido. Vim dar uma consulta a ele que precisava de ajuda.
- O senhor é médico?
- De certa forma sim, não sou
médico de corpo sou médico de alma. Sou conselheiro, aí mais um mérito que a
idade me dá. As pessoas me escutam os conselhos e, em geral, mudam seus
corações para melhorar suas vidas.
- Nossa que bonito o que o senhor
falou.
- E no seu caso, dona Lena,
deixe-me adivinhar. Olhou de cima a baixo com ar de zombaria fingindo analisar
os modos, com o dedo no queixo e um bico comprido, sobrancelha levantada. Ela
riu daquele senhor divertido. Deve ter ficado até tarde no escritório tentando
resolver algum problema, pois o novo presidente deve estar querendo tirar o
couro de todo mundo. Ficou sozinha na empresa e teve de vir sozinha para parada
sonhando apenas em chegar em casa assistir tevê e comer algo.
Ela o encarou paralisada. Ele era
realmente bom em análise.
- Perfeitamente! Acho que além de
conselheiro o senhor é mágico-adivinho!
- Ah, foi um chute certeiro. Hoje
em dia é tão fácil ver jovens como você se matando no trabalho que nem foi
difícil adivinhar.
- Pois é, o novo chefe entrou a
pouco e quer conhecer tudo, melhorar tudo, mudar tudo e está deixando todo
mundo louco. O cerão é geral. Todos estão com olhos fundos de olheiras, e com o
aspecto cansado. Espero que essa maré de serviço pesado passe logo. Hoje calhou
de ficar somente eu até essa hora. Geralmente tenho companhia na parada, mas
hoje foi diferente. Ái seu Joaquim, tem horas que só se quer sofá e preguiça e
é assim que estou me sentindo. Queria tirar esses sapatos apertados, pedir uma
pizza, sentar em frente a tevê e me largar por um tempo do mundo. Sem pensar em
problemas ou preocupações. Ser só eu de coração tranquilo e cabeça leve. Há
tanto tempo não sei nem mesmo o que é isso. Tenho trabalhado tanto que o
desânimo é meu único companheiro em casa. Não tenho tido força nem mesmo de ler
um livro, coisa que tanto gosto. Só quero dormir, só quero deitar, só quero
moleza. Foi-se o tempo em que tinha ânimo de estudar, de ler mesmo, de
conversar. Agora só sinto vontade de não produzir nada de deixar o tempo
passar. Dizia isso olhando para o outro lado da rua, parecia mais falar sozinha
do que com o velho. Desabafava sua desgostosa vida, suas frustrações, suas
inquietações como que para si mesma. Tantas vezes já o fizera. Sozinha em casa,
um ponto fixo no olhar, divagando sobre tudo que gostaria e não fez. Sobre seu
emprego, sua vida. Amigos? Quase nenhum, quase não os via.
- Sinto uma tormenta em meu
peito. Tento a mudança e não alcanço. Não vejo perspectiva de nada, não tenho
força de vontade para mudar. Não consigo atingir o próximo degrau. Me sinto
estagnada, cansada, deprimida. Não consigo lutar! Por vezes acho mesmo que nem
quero lutar, que me acostumei a ser assim. Acomodada sem me incomodar. Ser
subestimada. Não acreditar mesmo! Eu já fiz tanto e nunca fui reconhecida, por
ninguém, nem por mim. Não acredito muito no meu potencial, não acho que tenha
um. Quem sabe, eu não tenha competência de assumir o que é melhor para mim
mesma. E o que é melhor? Isso eu também não sei, mas tenho certeza que essa
vidinha medíocre que tenho vivido não é a resposta. Não sei quem sou, ou para
onde eu vou. Sei o que quero, mas não tenho coragem de mudar. Vislumbro um
lugar, mas ele se mostra mais distante do que uma pintura em museu. Com um
espaço de segurança para que eu não posso alcançar a imagem. Não tenho tido
força geradora para a mudança. Já fui tão revolucionária e ativa. Nem sei ao
menos o que está acontecendo comigo. Oras – Lembrou-se que não estava sozinha
em sua casa, que estava ali na rua, na parada, dizendo tudo em voz alta, para
um estranho, desconhecido. Sentiu vergonha e voltou a si. Por que dissera tudo
aquilo a esse homem? Deve ser a semelhança com seu avô – mas o senhor não tem
nada a ver com essa história, não é mesmo? – Deu um sorriso sem graça, para
tentar mudar de assunto – Desculpe-me por ocupá-lo com pouca coisa. São
devaneios febris de jovem. E Helena voltou o olhar para chão, talvez por
vergonha ou para mudar de assunto, ainda não sabia ao certo.
- Sabe qual é o mal da gente,
Lena? – Ela o olhou como uma criança ao pai – Achar que não compartilhar os
problemas com o outro é sinal de força. Se compadecer pelo problema do outro,
seja amigo ou não, não é sinal de fraqueza, mas de que a pessoal tem um
coração. Tem sentimento pelo outro. E compartilhando assim o que te aflige fica
mais fácil encontrar a solução do que quer que seja. Compartilhar é sempre
melhor do que restringir. O que quer que seja sabe? Conhecimento ou problema. Agora,
vamos pensar um pouco sobre o que cê acabou de me falar – o velho olhava para o
céu, para as estrelas como se lá sim estivessem as respostas – Todos os
problemas que você relatou mostram uma coisa: você. Não há muito o que eu ou
qualquer outra pessoa possa fazer, pois a resolução de todos eles depende
exclusivamente da sua atitude. A senhorita esteve acostumada a preguiça, a
procrastinação, a deixar para depois e mesmo que eu faça um discurso mostrando
o quando isso é ruim e prejudicial, somente você – e bateu de leve a bengala na
perna da moça – poderá trazer as soluções do seus problemas. Somente você
poderá ser a força motriz a impulsionar seu progresso e melhoria. Criança,
chegou a hora de se olhar no espelho e decidir como quer viver. Se o que te atrapalha
é a tevê desligue-a, se o problema é o sofá não sente nele, se não consegue
estudar em casa vá a uma biblioteca, se quer aprender algo novo procure onde
ensine. Não quero dizer que essa será uma luta fácil, como não tem sido. Mas a
vitória depende unicamente da sua ação. E a única a ser prejudicada ou ajudada
será você.
Ela deu de ombros, olhava
novamente o chão, apoiava os cotovelos nas coxas, e a cabeça nas mãos. Cresceu
lhe um bico de menina contrariada. Sabia daquilo, mas como poderia mudar?
- Mas como poderia mudar? Não é
tão difícil como você pensa e nem precisa ser assim de forma radical. Sabe qual
seria um bom começo? – ela sacudiu a cabeça negativamente, ainda olhando o chão
– Decidir o que você quer. Chamam de planejamento e irá ajudar você a enxergar
prioridades, prazos, metas, apli...ca...bi...li...da...de – eles riram do jeito
com que ele não conseguia pronunciar a palavra. Ela endireitou o corpo e disse:
aplicabilidade – Essa palavra mesmo, às vezes minha cabeça pensa e minha língua
não responde. Sorriu sereno. Pegue um lápis, ponha no papel o que você quer, os
sonhos antigos, os novos. Pense de quanto tempo precisa o que deve ser feito.
Depois monte seu tempo a favor do que quer. Confie em você, mude uma hora,
depois duas, depois três. Ahahaha! Quando se vê o mundo já está se movimentando
sem muito esforço. É tudo uma questão de começar, ter objetivos e não
desanimar. Não vale, você assim com tanta vida gastando mal. Assim Deus se
chateia! Você reclama Lena de que não é reconhecida no trabalho, o problema não
é esse na verdade. Você não quer ser reconhecida, quer ser apontada. No meu
tempo, e nem vai tanto tempo assim, hahaha! Nosso maior reconhecimento era o
trabalho feito, pronto, concluído. Esse era nosso troféu, nossa medalha. Pense
nisso, reconheça-se! Vença os obstáculos e se coloque feliz por isso! Cada
milímetro conquistado será seu mérito. Não cobre das outras gentes o que você
gostaria. Não dá pra pedir que os outros ajam de acordo com o que a gente
acredita. É se chatear a toa! Se frustrar por pouco. Agora, se você realiza o
que é seu, sua felicidade estará conquistada. Ai, ai, Lena, se esses fossem os
maiores problemas do mundo estaríamos em paz uns com os outros.
Ela o olhava com um sorriso que
transparecia admiração. E ele a olhava com um amor de pai que mostra como
caminhar, mas deixa que os passos sejam dados sozinhos.
- Nossa, o senhor é bom mesmo!
- Ué, bom no que?
- No que faz, não é a toa que é
conselheiro! Podia abrir um escritório e cobrar a consulta que seria muitíssimo
rico.
- Ele a encarou com um sorriso.
Não preciso de escritório, nem mesmo de ser rico, não preciso de nome, nem
mesmo de paletó novo. Meus chinelos gastos me levam aonde eu preciso ir. A
única coisa que eu preciso e de um coração que se abra para as palavras que
esse velho tem a dizer. A mudança tem de vir de você. Eu só mostro a porta, mas
você abre. - Já escorriam de seus rostos lágrimas quentes - Não quero que os
filhos meus se sintam desamparados no mundo, porque não estão.
Ela, sem pensar, o abraçou em um
ato de reconhecido amor. E ele assim retribuiu, e com um beijo no topo da
cabeça da moça se despediu.
- Estou com os olhos melhores que
os seus, olha só, já vem o meu ônibus.
Ela se virou para olhar e viu um
silencioso ônibus azul vir tranquilamente pela via. O letreiro brilhante dizia
pôr-do-sol. Mesmo sem dar sinal o motorista parou na parada. O velho apoiou na
bengala, levantou, alinhou sua roupa.
-Que tal estou? Dizia ele
sorrindo.
- Está muito bonito, pode até
arranjar uma namorada. Eles riram.
Ela se levantou abraçou o velho.
Agradeceu a vinda e pediu para que aparecesse outras vezes. Ele riu alto,
balançando os ombros magros.
- Mas, Lena, eu estou sempre com
você! Basta me perceber os passos.
Ele virou e andou em direção ao
ônibus. Não havia reparado mais o senhor andava com dificuldade, tinha uma
perna torta, a bengala lhe dava apoio. Subiu a seu tempo, sentou-se na cadeira
preferencial e antes de dar tchau a moça fez sinal para que ela olhasse para o
pescoço. Ela pôs a mão e sentiu um colar. Abaixou a cabeça para tentar ver, era
uma corrente simples, dourada, com um pingente em forma de cachimbo. Quando
levantou a cabeça o ônibus já não estava lá. Haviam carros passando na via,
pessoas transitando na rua. Olhou o relógio os ponteiros marcavam 22h16.