Hoje tive um sonho (ou era
verdade?) que a mata me acordava com o assovio do vento nas folhas. Deitada em
uma árvore, lá estava eu, bicho fora de quadro. Suburbana perdida na mata. As
folhas me saudavam, bem-vinda pequena criança. Bem-vinda para o lugar de seus
antepassados, fortes homens e mulheres que por amor e sangue preservaram suas
casas, árvores e Deuses. Um barulho de passo na mata me tira a serenidade. Será
um bicho? Será gente? O que devo fazer? Olho para o lugar de onde penso sair o
barulho. Céus, que visão linda! Uma bela cabocla, braço forte, peito fardo,
cocar, arco, flecha, saia de pena, adornos feitos de palha amarrados em seu
tornozelo, pulso, braço, pinturas pretas e vermelhas, pele mulata, cabelos
compridos. Me olha e faz sinal para segui-la. E lá vou eu, menina perdida na
selva. A mata era fechada, acima de nós somente árvores gigantes com pelo menos
2.000 anos de morada naquela terra. O ar era fresco e suave, e o sol tentava se
esgueirar entre as folhas que eram muitas. Olhar para cima era ver a vida de
Deus naquele quadro. Que beleza de visão, que alegria de criança, que
serenidade. Esqueço um pouco o céu verde e tento acompanhar a bela cabocla. Ela
com passos rápidos e premeditados, eu tentando não cair ao acompanhar. Estava
com um medo medido: para onde vamos? O que estou fazendo aqui? Quem é essa
acolhedora anfitriã? Será que tem cobra aqui? De repente ela para em frente a
um caminho estreito, mas luminoso. Como se daquele passo em diante eu fosse
descobrir alguma coisa. Que coisa? Ela se vira, olha para mim com serenidade,
põe suas armas ao chão, se ajoelha e eu a imito como se fosse natural aquilo
tudo. Ela apóia as mãos em meus ombros, olha profundamente na minha pupila,
sorri. Me traz para junto dela, um abraço. Os ombros apóiam as nossas cabeças,
os braços entrelaçados. Eu choro, ela chora. A impressão é de um reencontro. A
sensação de que eu, ela, a mata, o vento, sempre estivemos ali. Sempre fomos
terra. Sinto os corações nossos batendo juntos, alegria mútua, saudade
infinita. Não sei quanto tempo se passou assim, abraço dado, coração junto,
água salgada. Por fim, desatamos e nos olhamos. As lágrimas borram sua linda
pintura nos olhos, uma listra vermelha intensa. Ela me pegou pela mão e me
encaminhou ao caminho. Seus olhos diziam: te trouxe até aqui agora é sua vez de
caminhar. Fez que sim com a cabeça, sinal que entendi e me virei para o caminho. Antes de por
os pés a caminhar lembrei de tentar perguntar
seu nome, virei e...ninguém. Estava sozinha novamente. No chão uma pena
vermelha. Apanhei-a e segui. Eu sedentarismo e o caminho uma subida. Caminhei,
caminhei, caminhei. Passei por árvores várias, frutas coloridas, bichos que de
longe olhavam, certamente tentando entender que bicho esquisito era eu. De
óculos e calça jeans. Não devem ter visto muitos exemplares deste. O caminho
deu em um lugar, a mata me deixou ficou só a terra avermelhada e um sol
intenso. Era uma delícia aquele sol, inundado minha mente. Fechei os olhos
sentindo a claridade, dessas coisas não se tem na cidade. Mãos espalmadas para
cima, o calor entrando por elas. Ouvi um barulho de água. Fui ver o que é.
Descobri que o caminho me levou ao topo de uma cachoeira. Que lindo era! Um
lago vinha calmo ser despejado em um salto. Agachei-me a beira do rio para
tocar a água. Quando, do outro lado da margem, surge um índio. Cocar e saiote,
carregando uma cabaça grande, como uma bolsa. Assustei-me com aquela enormidão
de homem. Semblante sério, porém sereno. Fiquei ali olhando ele, ele me
olhando. Encantada com a imagem, mas com medo de quem ele era. O índio veio,
entrando no rio, atravessando a correnteza, chegando a mim. Eu, que nesse tempo
já estava com os olhos mais arregalados do que um lêmure, fiquei sem ação. E
agora? Ele chegou a minha margem, na minha frente, agora parecia ser uns 2
metros de pessoa. Olhava-o esperando o próximo gesto, e ele veio. Me estendeu a
mão esquerda, e fiquei sem reação por alguns segundos. Quanto lhe segurei a
mão, ele me ajudou a levantar, olhou meus olhos e passou suavemente a mão
gigante sobre meu rosto. Pequena criança perdida, eu que sou tão senhora de
mim. Me segurou e levantou acima de sua cabeça. Para ele pareci uma folha de papel.
Atravessamos o rio, me colocou a margem, segurou a minha mão e começamos a
caminhar. Ele andava com vagareza para acompanhar minhas pernas curtas. Do lado
dele era pequenina, criança desprotegida no caminho sem destino. Andamos, agora
por um caminho mais largo com árvores menores, arbusto, e agora conseguia ver
os pássaros. Tão coloridos e cheios de vida. Deus deve fazer esses lugares só
para ficar olhando de longe e admirar como é bela a criação. Paramos em uma
pequena passagem de água. Coisa de 50 cm, água cristalina que passava para
algum lugar. Posso beber? Estou com sede da caminhada. Ele fez que sim e deu um
meio sorriso. Juntei as mãos, que maravilha. Água fresca, me fartei. Por fim
levantei, e ele olhava como que procurando alguém. Fez um suspiro, sacudiu a
cabeça e assoviou. Assustei-me pela ação, mas o assovio era macio e suave,
parecia que estava dando “alô” aos seus. Fiquei esperando, o que será que
aquele assovio significava? Me acheguei para perto dele, com medo do que ia
aparecer. Ouvi barulhos do lado de lá da água. E agora? Parecia correr. E
agora? As folhas estralavam pela passada. E agora? Quando me percebi já estava
quase atrás do índio. De medo mesmo, qual criança. Por fim apareceu, um menino,
um menininho, de cabelo de cuia, montado em uma onça enorme. Naquele momento só
não corri porque as pernas não me obedeciam. Ai, ai, ai! A onça parou do lado
de lá da água, o menino desceu. E riu de mim. Ficou rindo de mim. O índio
grande também se botou a rir. E eu? Fiquei brava por certo! Como não temer uma
onça pintada que se apresenta a sua frente? Ela nem reparou em mim, postou a
enorme cabeça na água e se pôs a bebê-la. Eu mal respirava. O menino então
atravessou o pequeno córrego e veio de encontro ao índio. Se abraçaram. E eu de
olho na onça, claro. O índio me tomou pela mão, se ajoelhou. Reparei que mesmo
de joelhos ele tinha quase o meu tamanho. Posou a mão em meus ombros e me
abraçou. Meu corpo era um pedacinho de gente dentro daqueles braços fortes e
grandes. Abraçando aquele homem de olhos fechados e sentindo sua serenidade
alegre. Sorri. Nos desatamos e ele mexeu na cabaça, tirou de lá uma tinta
vermelha com a qual desenhou minha testa, era gelada. Não sabia o que era o
desenho, mas sabia que era bom. Me senti protegida, me senti parte dele. Tirou
de lá um pedaço de cipó e uma pena. Colocou os dois em minha mão, fechou e a
encostou em meu coração. Disse alguma coisa que não entendi e chamou o menino
com a mão. Ele veio, os dois fizeram que sim. O índio foi embora por onde
viemos. Ficamos eu, o menino e...aquela onça. Voltei a parar de respirar. Ele
percebeu, olhou pra mim, olhou pra onça. Chamou o enorme felino e segurou
minha mão. Estava paralisada com aquele bicho vindo a minha direção. É possível
morrer de medo? Ele estendeu meu braço, que estava sem sustentação e abriu
minha mão. A onça veio, veio, veio, fechei os olhos. Meu coração dançava uma
espécie de rumbatangomerenguemacarena. Quando senti o pêlo fofo, abri os olhos.
A cena era simples, eu de mão aberta e ela com o topo da cabeça encostada. E o
menino me olhava com aquela cara de “deixa de ser fresca, ela é de estimação”. De
repente o medo virou alegria e eu estava agora com as mãos alisando todo o
animal. O menininho riu, e se pôs em cima dela. Me estendeu a mão, montei a
onça. Pera, eu estou montado em uma onça! E ela deu uma carreira mata adentro.
Andávamos rápido, como ela tem força para andar assim? Eu agarrada ao menino,
ele apontava para árvores e bichos. Devia brincar por aquelas bandas. Andamos
por paisagens impressionantes, passamos por outros índios. Vi mulheres com
cestos grandes, pequenos filhos nas costas. Ele falou ao ouvido da onça, ela parou.
Chegamos a entrada de uma tribo. Havia vários índios, índias, meninos, meninas,
bichos, palha. Todos pararam a nos olhar. Fiquei sem saber o que fazer. Não sei
lidar com multidões de desconhecidos me olhando. O menino desceu, eu desci. Ele
parado e eu também. Todos me olhavam, olhava a todos. Senti a mão do menino na
minha, deu uma puxada para que o olhasse e fez menção a andar, acompanhei.
Andamos pela tribo, tinha casa de palha, lugares de trabalho, comida, farinha,
pintura, tambores. Até que chegamos a uma enorme cabana de palha, toda fechada.
Entramos pela porta de palha. Lá dentro três caboclos sentados. A esquerda um
índio com vestes de couro, a direita um índio de penas verdes e ao centro (o
que parecia ser o mais velho) um índio de cabelos compridos amarrados. Não me
olharam de primeira, estavam concentrados em uma bacia grande com água dentro.
Depois de alguns segundos me olharam, os três juntos, como se tivessem
ensaiado. O menino apontou para o meu all star, pediu em gesto que eu os
tirasse e assim o fiz. O menino parou ajoelhado a frente da bacia e falou com
os três. Era uma língua distante que não
entendia. Me pareceu, de certa forma, o ato de pedir a benção, pois todos
responderam juntos as mesmas palavras. Depois, se virou para mim, segurou minhas
mãos, puxou-as e eu entendi que era para ajoelhar e assim o fiz. Pousou as mãos
em meus ombros e me abraçou. Não sei exatamente qual a mágica que aquele menino
tinha, mas me faz chorar sempre que lembro. Senti o pêlo macio me esquentar as
costas. A onça também viera se despedir. Desfeito o abraço, afastei a franja de
cuia e beijei-lhe a testa, depois toquei o nariz com o indicador e ele riu.
Abracei a onça pelo pescoço e senti o seu calor. Antes de sair, o menino tirou
o bolso de sua roupa de pano um pedaço de couro de onça. Sorriu e saiu
correndo, como é das crianças. Fiquei olhando o couro na minha mão e esqueci
que estava na presença de outros. Abri minha pequena bolsa a tira colo e
guardei. Assim como tinha feito aos outros presentes. Voltei a olhar para os
outros três. E agora? O mais velho acenou para que eu chegasse mais perto.
Estavam eles, a bacia e eu. Ele fez com que lhes mostrasse as mãos. De braços
estendidos as mãos com as palmas para cima ficavam de forma perfeita em cima da
bacia. A ordem das ações eram sempre assim: o da esquerda, o da direita e o mais
velho. O primeiro pegou as minhas mãos, olho-as pausadamente, como que as lendo. O
segundo as virou e olhou profundamente. O terceiro tirou um pedaço de madeira
em formato de lápis, com a ponta queimada que parecia um carvão e desenhou
alguns símbolos em meus braços e mãos. Por fim, mostraram em gestos que deveria
beber da água. Com a mão em concha adentrei a bacia, apanhei a água e a bebi.
Tinha um gosto diferente, pois havia se misturado a tinta/carvão das minhas
mãos. A água escorreu pelos meus braços e pingou no chão de terra. Ao beber da
água de olhos fechados, senti que ao invés dela descer para o estômago subiu
lavando meu cérebro e todos os canais antes entupidos. Depois percorreu meus braços,
troco, pernas, dedos. O que é isso? O que pode ser? Quando percorreu todo o
corpo chegou aos olhos e eu os abri. O mais velho sorria. Certo, agora você
consegue nos entender. E eu o entendia. Olhei ao redor, já não estávamos mais
na cabana. Mais parecia um pedaço de céu esquecido por Deus na terra. Ele
continuou: não se assuste criança, não queremos lhe fazer mal. Viemos pelo seu
pedido. Mas quem são vocês? Os nomes não importam, e nunca importaram. O que
vale é o sentimento e a vontade de mudança. Nossa, você parece um monge. Ora
criança, e por que não poderíamos ser? No seu conceito monge é aquele ser
sereno e pleno, cheio de paciência e compreensão, disciplina e amor. Estou
correto? Então, ser monge depende unicamente da sua construção diária para esse
objetivo. Pelos seus olhos, acho que não acreditou que um velho índio pudesse
te dar uma lição de monge. Eu, atônita. Viemos aqui para atender seu pedido,
responder suas dúvidas, mostrar lhe o novo mundo. Chegou a hora criança, sem
preconceitos e mentiras. Nesse lugar nada conta, a não ser o seu real
pensamento e sentimento. Não sei quanto tempo passei naquele lugar, com aqueles
homens de tamanhas sabedorias. Eles me falaram sobre pequenas e grandes coisas,
do cultivo das plantas até as galáxias mais distantes. Da formação da Terra, da
formação do homem. Da minha vida, do meu coração. Perguntei sobre tudo, sobre
todos, sobre Deus e o inferno. Quis saber tudo, quis ficar ali para sempre.
Rimos. Por fim, me pediram para estender a mão como no começo, palmas para cima
paralelas a bacia. O primeiro me deu uma tira de couro, que parecia parte de um
laço. A banhou nas águas e pôs em minha mão. O segundo me deu uma folha
comprida e pontiaguda, banhou a nas águas e pôs em minha mão. O mais velho me
deu uma ponta de flecha, banhada nas águas. Fiquei emocionada e agradecida por
esse momento. Não proferi uma única palavra, pois as lágrimas me embargavam a
voz. E caíram muitas delas sobre os presentes dos três. Com um leve sorriso,
cada índio das pontas colocou uma mão em cada ombro, e o mais velho segurou as
minhas mãos. Ergui o rosto, e em um breve sorriso, ele disse: já é hora de
voltar, criança! E soprou meu rosto com a leveza dos céus. Bip, bip, bip, bip,
bip. 8h da manhã de sábado. Acordei com as mãos ainda juntas. E ali, deitada na
cama, pensei em todo o sonho. Talvez por horas devo ter ficado deitada tentado
fechar os olhos e voltar. Não consegui voltar. Levantei convencida de que foi
um sonho. Um sonho? Um sonho. Um sonho...Decidi levantar de vez, é hora de voltar
a ser realidade. Realidade! Realidade! Fui cumprir minhas tarefas de sábado.
Tomei café, assisti tevê, tomei banho, me arrumei, peguei a bolsa. Sem
perceber, vi que era a mesma bolsa do sonho. Só um sonho! Realidade! De toda
forma, coloquei a mão dentro da bolsa pra sentir novamente aquela sensação
incrível do sonho. Só um sonho. E então os toques das penas, do couro, do cipó,
da ponta da flecha estavam lá.