O homem chegou ao armazém de seu
Belarmindo. Boa tarde, como vai? A cidade era pequena, esquecida no tempo e na
história, lugar de gente simples e de muita memória. Gente acostumada com o
roçado longo, o dia claro e o descanso pouco. Gente acostumada mesmo com o
trabalho, sol a sol. Sem prestígio e sem remédio. Povo de alegria parca e
coragem muita. Boa tarde doutor Marcos! O que quer para hoje? O de sempre, o
senhor pode me trazer uma garrafa de cachaça e o prato do dia. Encostado na
bancada virou para olhar onde sentar. O lugar era pequeno uma dúzia de mesas
com cadeiras. Estava tudo ocupado. Somente uma cadeira disponível e ela estava
a mesa de um velho negro. Receou ainda em pedir para sentar-se lá esperaria
desocupar outro lugar. Não queria almoçar junto de estranho, ainda mais um
estranho negro. Seu Belarmindo trouxe a comida, a garrafa e copo. Nada das
cadeiras desocuparem...o estômago roncou e ele foi vencido. O senhor dá licença
d’eu sentar? O velho homem, com o rosto marcado pelo sol e o trabalho, levantou
os olhos do prato e viu o jovem, branco e arrumado. Parecia desses “doutor”
metidos a besta. Pensou consigo: não quero ter de almoçar com esse tipo. Olhou
para os lados e não tinha nenhum outro lugar vazio. Olhou novamente o jovem
branco que esperava, com um sorriso pela metade. Sente-se. O jovem sentou. Hoje
o almoço era um baião de dois, especialidade de Dona Carminha, a esposa de seu
Belarmindo. Quando era dia de baião o armazém ficava cheio, para a alegria do
dono. Mas, voltemos aos dois na mesa, estavam lá lado a lado pensando cada qual
na sua vida querendo estar longe um do outro. Preconceitos sem explicação embutidos
na pele pelo tempo, pela história, pela desmedida humana. Eu sou mais você é
menos. Eu sou mais você é menos. Eu sou mais você é?....menos. Mentiras
repetidas por tanto tempo para ter cara de verdade. Estavam tensos, os dois.
Pensando em histórias da carochinha de como gente assim [?] não presta, não tem
valor, não tem respeito. Os dois pensavam a mesma coisa, mas em sentidos
contrários. E, não sei bem te dizer o porquê, eles começaram a conversar.
- O senhor quer um copo de
cachaça? Cai bem para acompanhar o baião de Dona Carminha.
Talvez o sorriso do rapaz tenha
sido um convite para o velho. Ou quem sabe, ele só precisasse de um pouco de ardência
para desenrolar a língua.
- Já que o senhor oferece, vou
aceitar sim.
- Seu Belarmindo, me traz mais um
copo, por favor.
O rapaz era deveras polido. Havia
estudado anos fora dali, conhecendo da agitação dos estudos e das noites da capital.
Aproveitou o tempo com todas as oportunidades. Conheceu doutores e mulheres,
fartou a mente e o corpo. Fez o curso de doutor em letras, mas, quando voltou
para cidadezinha, o máximo que conseguiu foi o emprego de tabelião no cartório.
Apesar de parecer pouco para aquela gente ele era uma autoridade de respeito.
Virou orgulho dos pais e da família. Vejam só que maravilha! Meu filho TABELIÃO.
Vinha de família simples: o pai sapateiro, a mãe cozinheira. Não se tinha muito
na casa, mas nunca lhe faltou comida. Quando criança caminhava na rua com suas
artes e façanhas, ajudava nas casas para conseguir um trocado, ou uma comida
mais farta. A mãe se orgulhava: meu menino vai ser muito trabalhador quando
crescer.
Dona Joana, mãe do rapaz, demorou
muito tempo até que conseguisse firmar a barriga. Foram 4 anos de casada sem
nada de filhos. Já estava desgostosa e sem alegria de tentar. O povo da cidade
dizia que era mau agouro, olho grande. Tinha quem dissesse que era macumba
feita para que ela nunca fosse feliz, também andando com preto dá nisso. Outros
ainda, diziam que ela era doente incapaz de fazer o que toda mulher deveria:
dar um filho ao seu esposo. Essa cobrança do mundo sempre lhe causou
sofrimento, ainda mais para ela, moça nova e bonita vinda de outra cidade. A
ela restou apenas abaixar os olhos e se apegar com Deus. Pois, naquele tempo, a
única que lhe era amiga era Dona Filomena pessoa de muito amor que cuidava das
casas grandes que ficavam nas fazendas. Naquele tempo ela já se tornara
governanta da casa dos Pereira, mas antes já havia limpado muito chão e muita
panela.
Um dia, nas suas rezas pedindo
para que um filho lhe firmasse na barriga ouviu palmas no portão.
- Joana! Oh, Joana! - Era Dona
Filomena.
Joana estranhou a hora, ainda era
cedo para que ela aparecesse. Tratou de ir abrir a porta, devia ser coisa
importante. Abriu a casa, entraram as duas. Sentaram-se na poltrona da sala.
Filomena trazia um embrulho em papel de jornal e Joana estava curiosa para
saber o que era aquilo. Percebendo o olho comprido da amiga foi logo falando:
- Escute, acho que encontrei um
jeito de você firmar o menino no ventre. Descobri o que ocê táva fazendo errado
- Os olhos de Joana se arregalaram, será possível que ali, no embrulho, havia
um milagre? – O problema é que ocê tava pedindo pro santo errado. Nosso Senhor
Jesus Cristo pode tudo, mas ele não entende dessas coisas de mulher não. Ele
era santo demais e nem nunca sabe como é que é ter filho. Ouvi a filha do Seu
Pereira dizendo que a filha do Seu Mathias só segurou menino na barriga depois
que fez novena para a Nossa Senhora. Mas não é só Nossa Senhora não, é para
Nossa Senhora do Desterro – Ao falar na santa Filomena abriu o embrulho, ela
carregava a imagem da santa – Agora eu tenho certeza Joana, vai dar certo. Eu mesma
fui lá na igreja e pedi a imagem para o Padre, agora é só ocê rezar direito
para encher a barriga.
Filomena sorria para o rosto
iluminado de Joana. Não custava tentar, mal não iria lhe fazer. Encheu o
coração de esperança, agradeceu a amiga com um forte abraço. A negra apressada
logo se despediu, pois ainda precisa voltar para a lida.
Sozinha em casa Joana pôde enfim
olhar a imagem com mais cuidado. Era a Nossa Senhora que vinha carregando o
menino Jesus nos braços, sentada em um burro e olhada por José. Colocou a santa
no altar, acendeu uma vela, dobrou seus joelhos no chão, entrelaçou as mãos na
altura do coração, abaixou a cabeça e pôs-se a rezar.
- Oh minha Nossa Senhora,
desculpa se negligenciei a sua benção realmente não havia lembrado que a
senhora é a mãe de todos nós, nossa intercessora junto ao pai. Me perdoe se na
sede de alcançar a minha graça esqueci que a Senhora, melhor do que qualquer
outro, saberia entender minha agonia e angústia. Mãe santíssima, perdoa essa
filha que por querer tanto alcançar o milagre não soube pedir a quem é de direito.
Perdoa, mãe. Se a Senhora ainda enxergar nessa filha o merecimento de receber o
ventre cheio com um menino, para a glória e benção dessa família, permita a
Vossa Graça sobre mim.
Filomena ao sair ficou aflita, um
medo lhe acometeu. Será que Joana iria perceber o fundo? Antes de entregar a
imagem a amiga, furou o fundo colocou um pequeno espelho, uma medalhinha de
ouro, algumas pétalas e fechou com argila. Foi até uma pequena dispensa, em sua
própria casa, ajoelhou-se no centro do quarto, colocou a imagem a sua frente,
envergou o corpo até que sua testa tocasse o chão. Com os braços abertos e as mãos
espalmadas para cima começou um cântico. Era uma língua estranha aos
brasileiros, era o Ioruba de sua terra, de sua velha África. Cadenciado e profundo
era o ritmo entoada por ela. Era uma oração em canto, era rezar em verso, era
orar rimando. Pedia a sua Orixá, mãe nas cachoeiras, que concedesse a graça a
amiga. Lhe cantou o canto, lhe rezou a reza, lhe pediu com pranto. Queria sim
que cessasse a dor daquela amiga que lhe acolheu com tanto amor e sinceridade
quando toda a cidade lhe virava a cara. Preta, achando que é gente. Andando na
rua dos brancos e querendo ser. E ela pediu, pediu a mãe na África que também
reinasse no Brasil que ela agora estava. Que a sua força grandiosa atravessasse
o mar, o oceano, e fosse derramada no ventre de Joana. O tempo do relógio não
soube contar a profundidade do pedido de Filomena, mas quando saiu do quartinho
ela sabia que já era metade da manhã.
Depois daquilo contou 3 meses,
Joana estava com vida na barriga. Não se sabe qual foi a reza certa [mas tem
reza errada?], mas as duas amigas sorriam satisfeitas. Todo dia, cada qual a
sua santa, pediam para que aquela vida vingasse e que a proteção maior cobrisse
o dia do parto. E então, a cada mês que virava e nada de ruim acontecia, Joana
e Filomena ajoelhavam transbordando alegria e promessas. Virando para o nono
mês a vida quis ver cara de gente, chutou, apertou, empurrou. Era hora de
chamar o doutor! Seu Josué, pai do menino, foi logo correndo pela cidade, a
casa do médico não era longe, na verdade nada lá era longe, cidade pequena é
assim só um apanhado de gente. Bateu a porta e não teve resposta, a vizinha
disse que o Doutor Geraldo estava atendendo lá na fazenda da Boa Vista.
- Danou-se – pensou o pobre homem,
quem poderia ajudar em momento de tamanha precisão? Lembrou logo do nome, virou
as costas para vizinha e deu no pé. Correu até a casa de Filomena.
- Cumadi acode, cumadi acode!!
Ela abriu a porta de madeira.
- Mas que diabos Josué, o que foi
homem?
- Tá na hora de Joana dar a luz,
cumadi, e o Doutor Geraldo não tá na cidade. Sei que você já fez nascer muito
menino nesse mundo, preciso de sua ajuda. Vamos lá pra casa, ligeiro!
A negra logo mudou as vestes e se
juntou a corrida de Josué. Chegaram a casa e Joana já estava suando muito, com
contrações contínuas e rápidas. Não levaria muito tempo, pensou Filomena. Pediu
os utensílios a Josué e mandou que saísse do quarto. A amiga, agora em função
de parteira, pedia mentalmente a sua Orixá: guia minha mão, minha mãe! Realmente
não tardou muito e Josué, aflito na sala, ouviu o choro de vida. A reclamação
de quem chega ao mundo sem saber direito como é o caminho. Ouviu Filomena
gritando: é um menino! Um menino! Sentou-se na poltrona da sala, recostando a
cabeça pesada de tanto esperar. Escorreu uma lágrima do olho direito. É um
menino.
Ora, mas tenha calma, que eu só comecei a contar a história.
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