domingo, 13 de abril de 2014

A.A.



Ele chegara com meia hora de antecedência, tempo suficiente para desistir e ir embora. Mas não podia fazer isso, não podia desapontar mais uma vez aqueles que amava. Parou o carro na rua de cima, não queria ser visto entrando naquele lugar. Nunca imaginou que precisaria daquilo para se livrar da desgraça da sua vida. Abriu o vidro, acendeu um cigarro. Merda! Foi o que pensou. Como chegou aquele ponto? Não sabia ao certo. Vícios são parasitas invisíveis que se apoderam do seu corpo e, caso não sejam extirpados a tempo, da sua alma. Mais que grande merda! Puxou uma tragada bem profunda, queria que a fumaça ocupasse seu pulmão e lhe matasse ali mesmo. É [sempre] muito duro encarar o que há de errado na vida. Soltou a fumaça e sua mente veio lembrar-lhe o porquê de estar ali. Lembrou do que já transcorria a tanto tempo. A mulher lhe disse que não aguentava mais aquela situação, que iria embora se ele não mudasse.

- Traste! Inútil! Olha o que você está fazendo com a nossa família! Olha o que está fazendo a mim, a você! Não vê que essa sua doença está corroendo o pouco amor que ainda consigo sentir por você? Olha-se no espelho, Caio que homem você é?

Olhou-se no espelho, mas se sentia normal. Não entedia o que tinha de errado. Como tudo tinha mudado de figura. O filho lhe tinha asco, vergonha, medo, nojo. Não se sentava perto dele, não queria que fosse buscá-lo na escola. O pequeno garoto de 8 anos já tinha percebido que o pai não era mais como antigamente, não era mais normal. Ouvia os pais brigarem a todo tempo. Escondia-se debaixo do travesseiro para não ouvir os gritos. Chorava de medo, de tristeza. Não sabia o que podia fazer para que os pais simplesmente parassem com aquele furdunço. E com o tempo ele entendeu, a culpa era do pai. E começou a tratá-lo como um pedaço de fígado mole, engole-se sem gostar.

- Pai, por que você é assim? Não gosta mais de mim nem da mamãe? Não quer nos fazer igual aquelas famílias das propagandas? Por que não muda e para de fazer a mamãe gritar? Eu tenho medo quando ela grita. Quando você sai ela se tranca no quarto por horas. Eu sei que ela chora. Não que ela faça barulho, sabe? Mas ela, depois que ela sai dá para perceber os olhos inchados, enormes...e vários e vários lenços de papel no lixo. Vocês vão se separar? Você vai embora? Acho que era melhor você ir embora assim a mamãe não chorava.

O estômago deu uma pontada, um calafrio acompanhado de dor. Toda vez que ele lembrava daquela cena, ele ao lado do filho no sofá...Acho que era melhor você ir embora assim a mamãe não chorava... Acho que era melhor você ir embora... Acho que era melhor você ir embora... assim a mamãe não chorava. Agora era ele quem chorava, um choro sentido e miúdo. Tentava puxar mais uma tragada com a boca trêmula.
Como chegara a esse ponto? Quando chegara a esse ponto? Não sabia. Não entendia como tinha entrado nesse caminho. Não se apercebeu das coisas a sua volta. Os amigos recomendavam: melhor não andar assim. Que nada rapaz, você está exagerando. Que mal a nisso? Agora, pensava, sua mulher quer ir embora, seu filho não quer sua companhia, todos se afastaram. Restaram poucos amigos para lhe dar consolo.

Ficou divagando ainda sobre sua vida. Terminou o cigarro. Ajeitou-se no banco. Olhou ainda mais uma vez para o volante, o carro desligado. Queria mesmo ir embora. Voltar para sua antiga vida de ouro, quando era exemplo, quando era amado por todos, quando tinha amigos. Mas sabia que não poderia fugir de se tratar. Olhou o relógio, faltava pouco mais do que cinco minutos para iniciar a sessão. Fechou os olhos, respirou fundo. Vamos lá cara, você consegue. Vai ser melhor para você. Lembra da sua vida antes disso. Saiu do carro e desceu a rua, entrou no pequeno prédio de 3 andares. A reunião era no 1º piso. Um amigo, que já havia passado pelo menos problema, o indicou o lugar, até disse-lhe que iria com ele se desejasse, mas não, ele quis a companhia, queria fazer tudo sozinho. Na verdade, no fim, não queria dividir sua vergonha com ninguém, queria ir sozinho. Para ele ir sozinho era a única possibilidade de alcançar a cura.

Entrou na sala indicada, sala 102. Entrou e lá no canto havia uma mesa com café e biscoitos, no fundo um armário e no centro um círculo de cadeiras. Já tinham pessoas na sala, conversando, alguns sentados olhando para o infinito. Ao ver aquela cena subitamente suas pernas não obedeceram e quiseram com toda força ir ao lado contrário, como uma criança birrenta. Ele ficou a porta por algum tempo parado tentando entrar, brigando intensamente com seu instinto de sair correndo, o corpo teso, os músculos travados, o suor que lhe escorria nas costas, a respiração quase parando. Quando alguém lhe encostou a mão no ombro direito “Vai entrar? Se não for, saia da porta. Já vamos começar a reunião.” Ele se virou para o senhor e acenou a cabeça dizendo que sim, venceu a briga com as pernas, entrou e se sentou. Todos fizeram o mesmo. Percebeu que o senhor era o coordenador da sessão. Trazia embaixo do braço algumas pastas e devia ter uns 58 anos. Cabelos grisalhos, boca pequena. Caio observava a tudo e a todos sem mexer a cabeça só com os olhos. Pensou que tinham muitos iguais a ele, que estavam em tratamento, queriam mudar.  
- Vamos iniciar mais uma sessão. Para aqueles que são novos e não me conhecem me chamo Marcos. Sou o presidente da fundação e assim como vocês já passei pelo mesmo problema. Não tenham medo de dizer o que sentem estamos aqui para ajudar no que for preciso. Iniciaremos como o de costume, cada um se apresenta e fala um pouco sobre sua semana, de como conseguiu alcançar os objetivos. Alguém?

Começaram. Ele ficou bastante atento. Nossa, certamente eles entendiam o que ele passava. Os relatos eram muitos parecidos com sua vida. Nossa! Todos ali juntos sabiam o que ele estava passando. Era como um confessionário no qual o padre também tinha pecados. Ele ficou, intimamente, maravilhado com a coragem dos outros, com as situações com as vitórias. Como ele poderia acreditar que existiam tantos como ele?
Todos falaram e chegou a sua vez. Todos o olhavam e isso fez com que o suor lhe subisse a testa. Lembrou-se da mulher, do filho, dos amigos. Respirou profundamente e tentou manter a tranquilidade no coração. Ajeitou-se na cadeira, cruzou as pernas.

- Oi, é....meu nome é Caio e... é a primeira vez que eu venho aqui. Foi a indicação de um amigo que me trouxe até essa reunião.

Um leve silêncio, acompanhado de algumas tosses e pessoas se ajeitando nas cadeiras.

- E pelo que eu percebi hoje tenho um problema. Não enxergava como um problema, sempre me achei bastante normal, sabe? Mas de uns tempos pra cá, percebi que não era igual aos outros. E isso tem incomodado todos a minha volta, tem me afastado dos que amo. Não quero que isso aconteça. Minha mulher, meu filho, meus amigos. Todos enxergam o problema que eu demorei a ver. Infelizmente, não sei como mudar, não sei o que mudar, não consigo ver o meu problema. Eu preciso de ajuda, sabe? Não quero perder tudo o que eu construí, quero ser igual a todos na rua. Não quero chamar atenção. Quero mudar. Quero voltar a vida antiga, não quero sofrer. E eu preciso de ajuda.

Marcos então falou:

A sua vinda até nós já é uma grande vitória! Seja bem-vindo ao grupo e mantenha o foco dos seus objetivos. Sei que não é fácil, também já passei por isso. Mas aqui você irá aprender várias técnicas de como se livrar desse mal, como ser normal. Não se preocupe nós o ajudaremos. Sei o quando é difícil ser mal-educado, egoísta e mesquinho. No começo é bem difícil se encaixar no que a sociedade indica como certo, você terá recaídas. É normal. Vai mostrar-se feliz, esquecer de reclamar, de sempre colocar seus problemas como mais difíceis. Não se preocupe, o tempo te dará prática para tal coisas. Aqui teremos dinâmicas de como se portar em grupos, como se superestimar, como se colocar acima dos outros, como humilhar os subalternos. Não se preocupe, você veio ao lugar certo. Logo, logo, sua alegria vai virar rabugice e você será muito bem aceito por todos lá fora.

Caio, então, feliz de sua nova possibilidade, feliz de em breve se encaixar na sociedade sorriu para o senhor e agradeceu. E por isso recebeu sua primeira repreenda. O senhor apontou para a placa que estava acima do portal da porta.

A.A. Alegres Anônimos
Ao entrar neste ambiente lembre-se:
Nada de sorriso.
Nada de gentileza.
Nada de cordialidade.
Nada de ALEGRIA.



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