- Traste! Inútil! Olha o que você
está fazendo com a nossa família! Olha o que está fazendo a mim, a você! Não vê
que essa sua doença está corroendo o pouco amor que ainda consigo sentir por
você? Olha-se no espelho, Caio que homem você é?
Olhou-se no espelho, mas se
sentia normal. Não entedia o que tinha de errado. Como tudo tinha mudado de
figura. O filho lhe tinha asco, vergonha, medo, nojo. Não se sentava perto
dele, não queria que fosse buscá-lo na escola. O pequeno garoto de 8 anos já
tinha percebido que o pai não era mais como antigamente, não era mais normal.
Ouvia os pais brigarem a todo tempo. Escondia-se debaixo do travesseiro para
não ouvir os gritos. Chorava de medo, de tristeza. Não sabia o que podia fazer
para que os pais simplesmente parassem com aquele furdunço. E com o tempo ele
entendeu, a culpa era do pai. E começou a tratá-lo como um pedaço de fígado
mole, engole-se sem gostar.
- Pai, por que você é assim? Não
gosta mais de mim nem da mamãe? Não quer nos fazer igual aquelas famílias das
propagandas? Por que não muda e para de fazer a mamãe gritar? Eu tenho medo
quando ela grita. Quando você sai ela se tranca no quarto por horas. Eu sei que
ela chora. Não que ela faça barulho, sabe? Mas ela, depois que ela sai dá para
perceber os olhos inchados, enormes...e vários e vários lenços de papel no
lixo. Vocês vão se separar? Você vai embora? Acho que era melhor você ir embora
assim a mamãe não chorava.
O estômago deu uma pontada, um
calafrio acompanhado de dor. Toda vez que ele lembrava daquela cena, ele ao
lado do filho no sofá...Acho que era melhor você ir embora assim a mamãe não
chorava... Acho que era melhor você ir embora... Acho que era melhor você ir
embora... assim a mamãe não chorava. Agora era ele quem chorava, um choro
sentido e miúdo. Tentava puxar mais uma tragada com a boca trêmula.
Como chegara a esse ponto? Quando
chegara a esse ponto? Não sabia. Não entendia como tinha entrado nesse caminho.
Não se apercebeu das coisas a sua volta. Os amigos recomendavam: melhor não
andar assim. Que nada rapaz, você está exagerando. Que mal a nisso? Agora,
pensava, sua mulher quer ir embora, seu filho não quer sua companhia, todos se
afastaram. Restaram poucos amigos para lhe dar consolo.
Ficou divagando ainda sobre sua
vida. Terminou o cigarro. Ajeitou-se no banco. Olhou ainda mais uma vez para o
volante, o carro desligado. Queria mesmo ir embora. Voltar para sua antiga vida
de ouro, quando era exemplo, quando era amado por todos, quando tinha amigos.
Mas sabia que não poderia fugir de se tratar. Olhou o relógio, faltava pouco
mais do que cinco minutos para iniciar a sessão. Fechou os olhos, respirou
fundo. Vamos lá cara, você consegue. Vai ser melhor para você. Lembra da sua
vida antes disso. Saiu do carro e desceu a rua, entrou no pequeno prédio de 3
andares. A reunião era no 1º piso. Um amigo, que já havia passado pelo menos
problema, o indicou o lugar, até disse-lhe que iria com ele se desejasse, mas
não, ele quis a companhia, queria fazer tudo sozinho. Na verdade, no fim, não
queria dividir sua vergonha com ninguém, queria ir sozinho. Para ele ir sozinho
era a única possibilidade de alcançar a cura.
Entrou na sala indicada, sala
102. Entrou e lá no canto havia uma mesa com café e biscoitos, no fundo um
armário e no centro um círculo de cadeiras. Já tinham pessoas na sala,
conversando, alguns sentados olhando para o infinito. Ao ver aquela cena
subitamente suas pernas não obedeceram e quiseram com toda força ir ao lado
contrário, como uma criança birrenta. Ele ficou a porta por algum tempo parado
tentando entrar, brigando intensamente com seu instinto de sair correndo, o
corpo teso, os músculos travados, o suor que lhe escorria nas costas, a
respiração quase parando. Quando alguém lhe encostou a mão no ombro direito
“Vai entrar? Se não for, saia da porta. Já vamos começar a reunião.” Ele se
virou para o senhor e acenou a cabeça dizendo que sim, venceu a briga com as
pernas, entrou e se sentou. Todos fizeram o mesmo. Percebeu que o senhor era o
coordenador da sessão. Trazia embaixo do braço algumas pastas e devia ter uns
58 anos. Cabelos grisalhos, boca pequena. Caio observava a tudo e a todos sem mexer
a cabeça só com os olhos. Pensou que tinham muitos iguais a ele, que estavam em
tratamento, queriam mudar.
- Vamos iniciar mais uma
sessão. Para aqueles que são novos e não me conhecem me chamo Marcos. Sou o
presidente da fundação e assim como vocês já passei pelo mesmo problema. Não
tenham medo de dizer o que sentem estamos aqui para ajudar no que for preciso.
Iniciaremos como o de costume, cada um se apresenta e fala um pouco sobre sua
semana, de como conseguiu alcançar os objetivos. Alguém?
Começaram. Ele ficou bastante
atento. Nossa, certamente eles entendiam o que ele passava. Os relatos eram
muitos parecidos com sua vida. Nossa! Todos ali juntos sabiam o que ele estava
passando. Era como um confessionário no qual o padre também tinha pecados. Ele
ficou, intimamente, maravilhado com a coragem dos outros, com as situações com
as vitórias. Como ele poderia acreditar que existiam tantos como ele?
Todos falaram e chegou a sua vez.
Todos o olhavam e isso fez com que o suor lhe subisse a testa. Lembrou-se da
mulher, do filho, dos amigos. Respirou profundamente e tentou manter a
tranquilidade no coração. Ajeitou-se na cadeira, cruzou as pernas.
- Oi, é....meu nome é Caio e... é a
primeira vez que eu venho aqui. Foi a indicação de um amigo que me trouxe até
essa reunião.
Um leve silêncio, acompanhado de
algumas tosses e pessoas se ajeitando nas cadeiras.
- E pelo que eu percebi hoje tenho
um problema. Não enxergava como um problema, sempre me achei bastante normal,
sabe? Mas de uns tempos pra cá, percebi que não era igual aos outros. E isso
tem incomodado todos a minha volta, tem me afastado dos que amo. Não quero que
isso aconteça. Minha mulher, meu filho, meus amigos. Todos enxergam o problema
que eu demorei a ver. Infelizmente, não sei como mudar, não sei o que mudar,
não consigo ver o meu problema. Eu preciso de ajuda, sabe? Não quero perder
tudo o que eu construí, quero ser igual a todos na rua. Não quero chamar
atenção. Quero mudar. Quero voltar a vida antiga, não quero sofrer. E eu
preciso de ajuda.
Marcos então falou:
A sua vinda até nós já é uma
grande vitória! Seja bem-vindo ao grupo e mantenha o foco dos seus objetivos.
Sei que não é fácil, também já passei por isso. Mas aqui você irá aprender
várias técnicas de como se livrar desse mal, como ser normal. Não se preocupe
nós o ajudaremos. Sei o quando é difícil ser mal-educado, egoísta e mesquinho.
No começo é bem difícil se encaixar no que a sociedade indica como certo, você
terá recaídas. É normal. Vai mostrar-se feliz, esquecer de reclamar, de sempre
colocar seus problemas como mais difíceis. Não se preocupe, o tempo te dará
prática para tal coisas. Aqui teremos dinâmicas de como se portar em grupos,
como se superestimar, como se colocar acima dos outros, como humilhar os
subalternos. Não se preocupe, você veio ao lugar certo. Logo, logo, sua alegria
vai virar rabugice e você será muito bem aceito por todos lá fora.
Caio, então, feliz de sua nova
possibilidade, feliz de em breve se encaixar na sociedade sorriu para o senhor
e agradeceu. E por isso recebeu sua primeira repreenda. O senhor apontou para a
placa que estava acima do portal da porta.
A.A. Alegres Anônimos
Ao entrar neste ambiente
lembre-se:
Nada de sorriso.
Nada de gentileza.
Nada de cordialidade.
Nada de ALEGRIA.
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