Hoje o dia começou brutal, com estrondo de vozes
nervosas querendo me engolir sem razão. Penso “você abusou, tirou partido de
mim, abusou, mas não faz mal”. Continuo passo a passo o meu dia corrido, sem
determinação exata de como vou me acabar hoje. Sinto meu coração como um tambor
tão forte quanto o de Parintins é um “tique tique tique tique ta”, talvez seja
a hora de começar a sair do sedentarismo 10 minutos de caminhada me deixam
desanimada, “mas que culpa tenho eu?...será que tudo o que eu gosto é ilegal, é
imoral ou engorda?”. Paro, admirando o passeio público, por um instante para
tomar fôlego. Sentada em um banco, ao lado de um jardim espero os batimentos se
aquietarem e, enquanto reparo nos transeuntes distraídos, aproveito e mergulho
para bem dentro de mim. Introspecções me atingem a boca do estômago e sobem até
a minha garganta, que estranha o movimento. Ah, pensamentos inconsequentes de
bem dentro de mim acalmem o ser que os alimenta. Quem sabe o meu mal seja a
falta de viver “diversão é a solução sim, diversão é a solução pra mim”, quem
sabe meu mal é o famoso estresse, preciso de férias, um lugar longe, acho que
“eu vou para maracangaia, eu vou!”. Como
se isso adiantasse, a verdade íntima de mim grita. As férias entorpeceriam
minha visão, mas, logo logo eu estaria comigo sozinha e aí danou-se! “Quem
saberá a cura do meu coração senão eu?”. Acendo um cigarro pensando que deveria
parar com isso, “por favor, pare agora!”, não, por hoje ainda sou fumante.
Terminei o cigarro, o fôlego semirrecuperado, continuo a subida ao trabalho. As
paredes sujas do SCS refletem o meu ser interior, sem vida, sem luz, sem
esperança, cansado. Droga, não deveria ter parado para pensar em mim! O cansaço
sentido, em plena segunda-feira, o sem ânimo. Ainda não sei qual é meu
problema, a minha vida toda é um problema, “a minha vida eu preciso mudar...
pra escapar da rotina”. Tosse, tosse, tosse, atinge meu peito. Acho que era
melhor parar de fumar. Já perto do primeiro bloco, depois do BRB, descobri tudo,
na visão de um passarinho que “cantou que vem aí bom tempo”. O sentido de tudo
em minha frente alçando voo, não de T-U-D-O, mas o tudo de mim. Vivo cansada de
esperar, assim como Pedro venho esperado...“esperando, esperando, esperando o
sol, esperando o trem[...]”. Meu trem chegou, mas a espera continua, a espera
de esperança, a espera de expectativa, a espera de ser diferente, eu e o mundo.
Eu não sabia, “mas talvez no fundo espere alguma coisa mais linda que o mundo,
maior do que o mar, mas pra que sonhar se dá o desespero de esperar demais”?
Espero por 20 anos o melhor de mim e ele ainda não apareceu. Quantos anos mais?
Dou bom dia ao Zé, hall ainda vazio, clico no botão do elevador e só me cabe
esperar “espere por mim...espere que eu chego já”. “Entro no elevador e aperto
o 12” que é o meu andar, procuro um “drops de anis” na bolsa, ajeito minha
“cabeleira do Zezé” ao espelho e respiro fundo. Do térreo ao andar de destino
determino (como tantas e tantas vezes fiz) a mim mesma a mudança, nunca é tarde,
sempre é tempo “e eu vou. por que não?”. Vou buscar o meu eu, vou achar a
alegria trancafiada, vou ao resgate de mim...mas só amanhã, afinal não tem
problema porque “amanhã vai ser outro dia”.
Epêntese. s. f. (gram.) || adição de uma letra ou de uma sílaba no meio da palavra: florzinha por florinha. F. lat. Epenthesis, do gr. Epenthesis (inserção).
segunda-feira, 3 de novembro de 2014
segunda-feira, 27 de outubro de 2014
Eu
Hoje vou me travestir de mim
mesma para revelar o que o meu íntimo insiste em mostrar descaradamente. Depois
de ontem pude perceber a realidade do meu ser que antes era ligado de forma
obrigatória a um ventre que não me pertencia. Depois do dia de ontem eu descobri o
porquê da minha essência diferente, descobri-me patinho feio nesse lago, nessa
represa. Depois do dia de ontem sou estranho no ninho, louca sã de mim.
Descobri que sou adotada e o fato apresentado nem me foi surpresa muito grande.
O seio do meu lar me mostrou o quanto sou diferente, os meus vizinhos me
escancararam a verdade já sabida, aqueles que me rodeiam disseram a plenos
pulmões a realidade, me escreveram mensagens intermináveis provando
matematicamente a minha orfandade. Assustada, de princípio, me vi com tantas
informações que a mente tentou implodir, mas a serenidade religiosa me colocou
em eixo novamente. O meu reconhecimento como ser humano, não dependia
unicamente das novas informações que me davam, mas do que eu sempre fui.
Respirei profundamente meditando aquelas novas visões do mundo e cai em mim
depois de alguns minutos. Ouvi, semicalada, ouvi em torpor, ouvi estrondos
lacônicos e vibrantes de novas [?] afirmações. A comunicação existiu eu entendi
a mensagem, o emissor se apresentou em som e onda e imprimiu nos meus ouvidos e
cérebro as palavras pungentes que me transmitiram horror, angústia, desolação.
Ontem à noite me senti órfã,
sem reconhecer a minha casa, a minha cidade e principalmente o meu país. Não
faço parte dessa xenofobia angular que atingiu o norte e nordeste. Não faço
parte da visão díspar do que é certo ou bom. Não faço parte desses seres
humanos MEDÍOCRES que não enxergam o outro de forma igual. Os brasileiros
genocidas que se apresentaram ontem são seres não-humanos, brutos, sem
civilidade ou conhecimento. Certamente vivem em um lugar escuro e sem
esperanças, matilha humana de animais selvagens que buscam rasgar, quebrar,
destruir o outro que não se enquadre ao bando.
Ontem eu quis ir embora daqui,
mas não pela eleição e sim pelas faces de cães raivosos especialistas em tirar
dignidade, opção, força, humanidade do outro. Estou...estou...eu nem sei te
dizer como estou, sinceramente não sei te dizer o que estou. É muito mais do
que asco, é muito mais do que estarrecimento, é muito mais do que
incompreensão, é muito mais do que eu senti no primeiro turno. É tanto que meu
coração não deve aguentar por muito tempo. Mas eu vou, sei que tenho que
suportar, eu vou suportar, não por mim, não pelo o que eu quero, não pelo o que eu
acho, mas pelo o que esse povo representa. Eles são minha família, meu sotaque,
minha fé, meu destino. Eles são eu, eu sou eles, nós somos mais fortes.
Minha cabeça ainda lateja um
pouco, preciso de novos ares, novas mentes, novas visões, novos horizontes.
Ainda é preciso muita luta para mudar as concepções mais mesquinhas, ainda é
preciso muito chão para que nos enxerguemos como iguais, ainda é preciso muita
humanidade em nós. Je suis desolée! Mas
ainda busco uma pátria verdadeiramente mãe.
segunda-feira, 13 de outubro de 2014
Tipo de gente
Das experiências da minha vida,
uma delas me ensinou mais do que eu imaginava. Certa vez, estava em uma roda de
pessoas, alguns conhecidos, outros não até que chegamos ao assunto religião.
Perguntas para lá e para cá, até que me perguntaram:
- E você é o que?
- Sou umbandista.
E, como em geral é, existe um
desconhecimento do que é a Umbanda então expliquei superficialmente os
preceitos da religião, a forma ritualista. Conversa vai, conversa vem uma das
pessoas me pergunta:
- E que tipo de gente frequenta
centros de Umbanda?
Inicialmente não entendi o que a
pessoa queria dizer. Que tipo de gente?
- Como assim, que tipo de gente?
- Tipo qual é o perfil de quem
vai lá? Qual a raça predominante, grau de escolaridade, profissão?
Entendi o que ela queria saber, a
pergunta dela não era só que tipo de pessoa frequenta, mas que tipo de pessoa
se deixa acreditar por essa religião. O sorriso levemente sarcástico nos lábios
da pessoa reforçava meu entendimento. Confesso que no momento só me vieram a
mente respostinhas rápidas, daquelas que podem e sempre vão magoar. Pensei em
um milhão e meio de coisas em 2 segundos para dizer, por fim:
- Posso te responder na segunda?
Tenho que ir agora.
- Claro.
Levantei-me, disse adeus a todos
e fui embora meditando naquela pergunta. Pensava que no tempo em que frequentei
a igreja católica, no tempo em que frequentei o kardecismo nunca haviam me
perguntado que pessoas seguiam aqueles dogmas, aqueles preceitos. Nunca foi
motivo de curiosidade as pessoas que acreditavam naquela fé e porque deveria
haver com os adeptos da fé umbandista? Fiquei me perguntando que tipo de pessoa
eu sou, afinal também frequento o local. Será que me pareço tão absurdamente
diferente dos demais integrantes do mundo religioso? Cheguei em casa pensando
nisso, dormi pensando nisso, acordei pensando nisso e fui para a gira, o
encontro quinzenal no terreiro, pensando nisso.
Os trabalhos começaram e eu
estava acabrunhada com aquele questionamento, meio chateada mesmo com a
intenção maldosa daquela pessoa, o que será que ela queria provar? Por que tratar
a fé do outro dessa forma? Percebendo meus pensamentos uma das entidades, que
estava incorporada, mandou me chamar. Embora a médium fosse uma mulher, a
entidade que se apresentava era um homem, um senhor de muitos anos. Tinha um
cachimbo na mão, um galho de alecrim na orelha e um olhar profundo. Pediu que
sentasse a frente dele onde havia um banquinho branco. Sentei como ele pediu e
logo o velho veio falar:
- Minha filha não está muito bem
hoje, não é mesmo? Se chateou com as conversas moles daqueles que sempre querem
balançar a fé do outro. Não se deixe abater por quem não quer o bem. Não se
deixe chatear por isso, não baixe seu padrão energético por nada, muito menos
por essa pessoas.
Fiquei perplexa, pensando que eu não
disse nada a ele. E, como se lesse meus pensamentos, me olhou profundamente nos
olhos e sorriu. Puxou uma baforada do cachimbo, pegou minhas mãos, deixando-as
espalmadas para cima, e soltou a fumaça sobre elas. Olhou, olhou, olhou parecia
ler alguma coisa nas minhas mãos abertas e, apesar da minha curiosidade, nada
disse.
- Então, se ela quer saber que
tipo de gente vem aqui... olhe em volta e me diga, que tipo de gente vem aqui?
Virei olhando, ainda em espanto,
para todos os que, como eu, estava sentados à frente de uma entidade. Contando-lhes
problemas, buscando soluções, querendo saber mais a respeito da vida depois da
morte, querendo saber mais do seu caminho na Terra.
- Pai, não sei dizer que tipo de gente
vem aqui. Só vejo homens e mulheres, de todas as cores, das mais variadas
roupas, não sei onde trabalham ou o que fazem. Não sei dizer se tem boa vida
nem mesmo o porquê de estarem aqui...sinceramente não sei o que responder.
- Tem certeza?
- Tenho sim Pai.
- Então eu vou te dar uma
ajudinha – e sorriu levemente – Sabe que tipo de gente vem aqui? – Fiz que não
com a cabeça e já estava aflita com a resposta – Só existe um tipo de gente que
vem aqui minha filha, do tipo que quer ajuda. Do tipo que precisa de apoio, do
tipo que não vai esmorecer até achar alguém que possa mostrar como é o caminho.
Por um momento fiquei anuviada,
quanta simplicidade, quanta profundidade, quanto amor.
- Olha ali, aquela senhora de
muleta. - Me virei, era uma senhora baixa, bastante magra, com os olhos miudinhos,
andando de encontro a uma das entidades - Quando ela chegou aqui não andava, não
falava, vivia em um mundo perdido na própria mente, veio acompanhada da filha. Os
médicos disseram que a senhora não passaria de um mês de vida. Como a maioria
dos atendidos, a filha veio com a mãe por não ter mais opção dizendo que não
acreditava nessas coisas, mas que o importante era a mãe melhorar. A senhora
passou do mês que os médicos disseram, depois mais um mês, depois mais um e mais
um, hoje já fazem bem uns 4 anos que ela vem aqui. Aos poucos ela começou a
sorrir, depois balbuciava algumas coisas, começou a falar, a se movimentar e
hoje já anda com a ajuda da muleta.
Não acreditei de pronto, como ele
poderia saber tão bem daquilo?
- Simples filha, aqui todos
estamos em corrente, vibrando e trabalhando em prol de todos, posso não atendê-la
materialmente, ela não está sentada no banquinho comigo que nem você, mas no
plano imaterial eu a visito e a ajudo.
Fiquei com vergonha do
pensamento, depois de tanto tempo naquele terreiro, convivendo com as entidades
sentindo-as tão fortemente ainda me pego pensando isso.
- Aquele rapaz – virei para o
outro lado e mirei um rapaz alto, forte falando com outra entidade – ele veio
até nós, metade por obrigação imposta pela mãe e metade porque se sentia fora
de controle, bebia demais, vivia em farras demais, estava envolto de obsessores
que só mantinham o ciclo de boemia e ele como não queria ser diferente ficava. Hoje é outro, trabalha, estuda e está noivo daquela
moça ali ô – Apontou a moça – Eles ainda terão uma caminhada bastante longa,
mas quando se tem propósito, ainda mais andando junto com o outro, fica fácil,
fácil. Olha, aquela moça com as duas crianças. Ela vem sentar no mesmo banco
que você está, me lembro bem dela. Arredia, descrente, desanimada, orgulhosa.
Foram muitas explicações e conversas até que ela entendesse os preceitos daqui,
até ver que o mal está em qualquer lugar que se dê espaço. Ela vinha de outro
templo, de outra religião, só veio porque os meninos dela estava doentes de não
dar jeito. Aos poucos ela foi melhorando e com o trabalho aqui os meninos
ficaram bonzinhos em uma semana, sem sinal de dor. Depois do trabalho feito, os
meninos saudáveis, ela disse que iria abandonar o outro lugar e só viria aqui. Sabe
o que eu disse?
- Não senhor.
- Disse que Deus, o Pai de todos,
o caminho de todos, estará em todo o lugar que ele for aceito. Ela não precisa
largar lugar nenhum, ela precisa fazer o bem e amar o próximo. E, é claro, que
ela pode frequentar quantos lugares ela quiser, desde que sejam lugares do céu
na terra. Minha filha vê que pouco importa o tipo? Que aquele que vem aqui, vai
lá? Minha filha entende?
- Entendo sim senhor.
- E já sabe a resposta?
- Acho que sim... – Disse isso
olhando para o chão e com a mão no queixo ele levantou meu rosto.
- É claro que sabe minha filha.
Agradeci, abracei aquele corpo “emprestado”
e voltei ao meu lugar. Fiquei reparando a moça com os dois meninos indo de
encontro ao velho. Que tipo de gente vem aqui?
Na segunda-feira, de volta a roda
com as mesmas pessoas, confesso que fiquei um pouco apreensiva. Será que eu
saberia passar o ensinamento? Conversa vai, conversa vem e a pessoa que
esperava pela resposta me perguntou:
-E aí, já sabe me responder?
- Sei sim, mas qual é mesmo a
pergunta?
- Uai, que tipo de gente frequenta
um terreiro de Umbanda?
- Pensei muito antes de ter uma
resposta e, até agora, não sei se vou te responder como você quer, mas a
resposta é mais simples do que pretendemos. Que tipo de pessoa vai lá? Do tipo
que quer ajuda, do tipo que tem fé, do tipo que vê na simplicidade das palavras
das entidades a luz no fim do túnel. Lá vai o tipo de pessoa que está em
frangalhos e busca com as últimas forças mudança. Lá vai o tipo de gente que
cansou de ser o que é, mas não sabe como mudar a situação atual. Lá vai o tipo
de gente como eu que vê resultados, ouve explicações e consegue colocá-las em
aplicação na vida e se sentem melhor com isso. Lá vai o tipo de gente que
chora, que sente falta, que quer mais do mundo. Lá vai o tipo de gente que se
curou, se melhorou e está feliz por isso. Lá vai todo o tipo de gente que não
precisa ser nada a não ser gente. Lá vai o tipo de gente que tem sangue,
coração, mente, que tem dor, aflição, vontade, que tem amor, provação, mas que
não larga a vida de mão independente da necessidade. Confesso que olhando para
todos naquele terreiro não vejo negros, brancos, amarelos, não vejo pardos, não
vejo ensino fundamental, médio, não vejo faculdade, não vejo carro, não vejo o
emprego...só vejo gente mesmo, do tipo que vive, que chora, que ama...lá só tem
desse tipo mesmo.
E, sem mais a acrescentar, quis
saber se tinha respondido a pergunta. Ela fez que sim e a mesa ficou por algum
tempo estática. Pedi licença, estava na hora de ir, disse adeus a todos e
peguei o rumo de casa. Que tipo de gente? Pensei sorrindo.
segunda-feira, 6 de outubro de 2014
Ela [sempre] vem
A campainha soa. É ela que vem novamente,
como tantas outras vezes. Veio a mim, em minha porta, nela bate, me chama.
Quando abro a porta não me espanto de vê-la, linda. Como poderia ela ser assim
tão sorridente? Adentra a casa sem que eu convide e é como se ela conseguisse
preencher todo o espaço, todo o vazio, tudo a sua volta.
- Olá, velha amiga!
A palavra 'amiga' me sai cortando,
mutilando, abrindo como um punhal tudo nele, de dentro para fora, até atingir o
ar. Ela se volta para mim me encarando com um sorriso de palhaço de gesso.
- Confesso que preferia dizer "a
quanto tempo" ou "que saudades", mas você tem visitado essa casa
com frequência. - Você vem visitando a mim, pensei.
Ela pega um copo e o enche de uísque,
exatas duas doses sem gelo e põe em minha mão com suavidade. Sorriu para ela e
silenciosamente levanto o copo em brinde.
- Por que estamos bebendo? Ao que devemos
brindar?
Ela não me respondeu e até achei melhor
assim. Eu sabia pelo que bebia. Eu sabia a quem brindar. Levei o copo a boca e
engoli de guti-guti até onde pude aguentar. Meu estômago sentia o volume de
meio copo de uísque sem gelo. O leve amargor reluzente imprimiu em mim uma
careta. Não pude ver, mas sabia que minha cara repuxava até um sorriso
sinistro, como se eu estivesse no Overlook, saudando fantasma à busca de um
iluminado. Voltei o olhar para a convidada que me observava, certamente lendo
meus pensamentos. Ela sentou-se no sofá e deu dois tapinhas no assento pedindo
para que eu tomasse o lugar ao seu lado. Obedeci, sentei, larguei o copo na
mesa de centro.
- Pobre Cezar! Você não está meio velho
para eu vir aqui pelo mesmo motivo? Pobre Cezar, poeta tolo e inconsequente.
Dentro de ti habita muito coração e pouco cérebro. Vou lhe instalar um sistema
de segurança, um alarme que dispare e ressoe ao sinal de qualquer amor
possível. - Gargalhou.
Ela ria de mim com uma graça malévola e
isso sempre me encantava. Já passei por isso tantas vezes, já devia me
acostumar. Conforme a ilustre companheira ficava e os copos se esvaziavam em mim,
eu pensava: por quantas vezes, talvez, eu me encontrei com ela? Perdi a conta
de vezes que chorei em seu colo. Perdi a conta de vezes que rimos juntos, da
minha desgraça, claro.
- Fazia tempo que não a via. O que há de
novo? Alguma nova glória? Um triunfo além do meu? Como é essa nova geração?
Vocês se relacionam, digamos, bem?
- Well, well, well, meu trabalho se tornou
mais fácil, confesso. Estou à caminho de um projeto de dominação mundial do
qual eu nem mesmo fiz planos. Hoje eles me chamam, me procuram, me querem, não
me afastam. Por isso já não trabalho mais sozinha. Tive de montar uma comissão,
tenho muitos que me acompanham. Daqui a pouco devem estar por aqui, se não se
importar.
- Que isso, esteja a vontade! Mas, por que
está aqui? Desculpe, mas nem te chamei.
Ela gargalhou fechando os olhos e erguendo
o rosto para o céu.
- Não me chamou? - Ela ergueu-se do sofá
com rapidez e uma ponta de ironia transparecia em sua voz. - Pense bem, não me
chamou? Que mentira! Eu só cheguei porque VOCÊ me chamou, só entrei porque VOCÊ
abriu a porta, só estou aqui porque VOCÊ me quer. - Ela arqueou a sobrancelha
esquerda e deu um meio sorriso pegando o copo de uísque e sentindo o cheiro da
bebida - Eu sei, você sabe, Aurora sabia.
Ele ao ouvir aquele nome
"AURORA" entrou em um transe profundo. Com os olhos fixos na mesa,
sentado no sofá, com os braços apoiados nos joelhos.
- Que pena. Que pena. Aurora - Murmurava
enquanto sua mente o transportava para um breve flashback cinematográfico.
Aurora era linda, uma das poucas mulheres que conhecera e, acredite, ele
conheceu muitas, que não precisaria de maquiagem ou qualquer adereço ela em si
já se bastava. Conheceram-se na casa de um amigo e, ao vê-la, sabia que deveria
estar com aquela mulher por toda a vida. O envolvimento dos dois se deu como
tantos outros de tantas outras histórias, de tantos outros amores: desejo,
conhecimento, ternura, alegria, paixão, envolvimento e, por fim, amor pleno e
sublime. Era assim um casal como o tal "Eduardo e Mônica" e, no começo,
como todo começo, correu tudo muito bem. Eram companheiros em todas as
situações, se orquestravam harmonicamente na cama, faziam planos para a delícia
da futura vida perfeita, e entre sonhos, cama e café decidiram enfim morar
juntos. Antes não o tivessem feito, pois as implicâncias reais, as manias
imutáveis, a falta de espaço sozinho(a), as expectativas pouco correspondidas,
o outro incomoda e não à amor que perdure a socos e pontapés. E com o tempo, ah
maldito conselheiro, o incômodo era reforçado pelas brigas de Cezar, seu vício
pela bebida, seu vício pela vida, pela boemia, seu vício pelo mundo. Ele, eu,
nós, nunca achamos verdadeiramente que Aurora poderia pensar em ir embora até
porque, apesar de tudo, ela o amava, ela me amava e ele a amava. Depois das
discordâncias, sempre a compensava, depois da ressaca curada saia com ela, lhe
dava presentes, carinhos, novas expectativas e amor. E assim cultivava o amor
esperava ele secar até as últimas e vinha com um balde de água gelada matar-lhe
a sede para mais uma temporada de sol e esquecimento. Até o dia que ele chegou
em casa, meio bêbado é verdade, e não reparou o silêncio, não reparou a carta
na mesa, não reparou a cama vazia. Acordou sem saber onde estava Aurora e desde
então não sabe para onde ela se foi. Que pena, Aurora. Acordou de sobressalto
do flashback ao ouvir a campainha tocar, deveriam ser os demais companheiros.
Abriu a porta e pode se admirar com as cinco figuras presentes naquela cena. Da
esquerda para direita, uma mulher musculosa com o cabelo um pouco emaranhado
carregando três mochilas nas coisas e quatro malas duas a cada mão; um casal de
gêmeos, um menino e uma menina, de no máximo 10 anos, vestidos com roupas de
criança dos anos 20, a menina de cabelos louros amarrados com fita e o
rapazinho com uma bonezinho. Estavam de mãos dadas e dirigiam seu olhar para o
chão; ao lado deles uma mulher divina, majestosa, sedutora, lábios vermelhos,
cabelo cheio, encaracolados, negros, um vestido que é melhor nem comentar e,
por fim, um rapaz de uns 30 anos, alinhado vestindo terno, ao vê-lo era
impossível não notá-lo, as fantasias diziam que por baixo daquela roupa havia
um corpo forte, musculoso, convidativo, ele era o charme personificado.
Entraram todos passando por Cezar e foram de encontro com a convidada intrusa.
- Boa noite a todos! Relatórios?
- Feito! - disse a moça das malas enquanto
jogava-as ao lado do sofá.
- Estamos trabalhando. - Disseram os
gêmeos em coro.
- Terminado. - Respondeu o rapaz charmoso.
A moça bonita só olhou e sorriu para a
perguntante.
- Cezar velho, apresento a minha equipe de
trabalho. São os melhores trabalhadores que já houve nesse mundo e em qualquer
outro. Ainda estamos fazendo seleção o mundo novo, a nova geração, a nova
condição de vida nos impulsiona para longe, para um lugar que nunca poderíamos
ter sonhado. Logo, logo a empresa será a maior da história!!! Será maravilhoso.
A das malas é a Culpa, você não sabe, mas ela tem dormido na sua sala. Os
pequeninos são a Angústia e o Desespero é incrível como sentimentos tão velhos
podem se moldar de forma pequenina. Eles não falam muito, mas executam muito
bem o trabalho. Vivem rondando as pessoas, soprando-lhes "ideias". -
Gargalhou enquanto dizia a última palavra - Reparei seu olhar para a Depressão,
mas tome cuidado ela é sedutoramente perigosa, pode arruinar sua vida em pouco
tempo. E esse rapaz, - e ela se aproximou dele, andando como se estivesse
encanta, até agarrar-lhe a cintura - esse lindo rapaz é uma obra prima, ele é o
finalizador, ele é o executor, é o último sorriso que eles vêem. Esse é o
Suicídio, não converse muito com ele, é um ótimo manipulador e extremamente
convincente.
Cezar ficou aterrorizado com aquela
percepção, fazia sentido tê-los todos em sua casa. Desespero e Angústia, a
Culpa e seus pesos, a Depressão sorrindo-lhe, Suicídio acenando e, a primeira
de todas em sua vida, a bela Tristeza. Cezar se colocou no centro, sentado no
sofá, com o copo de uísque em mãos, enquanto os demais se arrodeavam dele,
sentados, conversando, rindo, contando misérias, falando de mortes, mostrando
martírios. Cezar não se apercebeu de nada disso, ficou paralisado
longinquamente, bebendo uísque, pensando em Aurora - Onde está Aurora? pensava,
pensava, pensava.
O dia amanheceu, levantou de solavanco o
que fez com que sua cabeça desse uma pontada de dor lancinante.
- Caralho! - A palavra soou mais como um
urro.
Ficou imóvel até se sentir melhor, mas a
ressaca tinha arrasado seu corpo. Foi recordando a noite anterior, na sala só
havia silêncio, alguma garrafas vazias de uísque, um cinzeiro abarrotado de
pontas de cigarro. Onde estariam aquelas figuras que lhe acompanharam pela
noite? Onde estariam? Levantou arrastando-se para o banho, pensando no ocorrido
da noite anterior. O estômago roncava, reclamava das horas de abandono. Saiu do
banho empurrando os chinelo. O silêncio do lugar o consumia, pensava em Aurora
- onde está Aurora? - lágrimas escorriam, ele buscou a garrafa de uísque
fechada, abriu e despejou o conteúdo no copo, levou a boca, engoliu. Começou um
choro copioso, uma torneira aberta.
- Que grande merda! - Gritava a plenos
pulmões - eu não quero o silêncio! Não quero morrer sozinho! Não quero o meu
eu!! Aurora, Aurora, Aurora...Cadê a minha Aurora? Que merda! Que vida de
merda! Que... - A campainha interrompeu o acesso de fúria. Foi a porta pronto a
atirar o copo em que fosse. Abriu a porta.
- Graças a Deus você veio! - Abraçou a
figura - Não quero ficar sozinho, não aguento esse silêncio, não quero pensar
nela, não quero pensar nas coisas. - Deixava o choro escorrer pelo ombro da
mulher que sorria.
- Calma, calma! Eu vou cuidar de você.
- Você é minha única amiga. -
choramingava.
- Tristeza é sempre uma boa amiga.
Com um sorriso estampado no rosto, um
sorriso de alegria, de vitória, de doce ironia, a Tristeza entrou a casa. E
assim o fez sempre o dono destrava o segredo da chave, sempre que a campainha
era atendida, sempre que ele a queria e com isso foi tomando aquela casa,
fazendo dela sua nova moradia.
quinta-feira, 18 de setembro de 2014
Hue hue hue aqui é BR!
Hoje não vou contar realmente uma história, quero contar o que aconteceu comigo na terça-feira. Se bem que, por mais que eu diga não ser uma história, tudo em nossa vida é ou será história. Enfim, era uma vez eu, na terça-feira dia 16/09 no Shopping Iguatemi. Ganhei um sorteio para assistir ao filme Isolados graças ao Jurassicast (aliás se você não conhece os caras, dê uma olhada no site deles vale super a pena e ainda pode concorrer as pré-estreias cinematográficas [http://jurassicast.com.br/]), então ganhei ingresso duplo para ir com meu benzinho nessa tal shopping center e ainda tinha direito a pipoca e refri! Para que você entenda melhor a história veja o trailer aqui: https://www.youtube.com/watch?v=mzVAwEYAxx4. Você percebeu que não é só um filme brasileiro é um filme de suspense/terror brasileiro. É um filme diferente do que estamos acostumados a assistir, não é uma comédia besteirol como a maioria. É uma tentativa nova de fazer cinema brasileiro e foi o que mais me interessou, por isso tive mais vontade de assistir. O que eu achei do filme não importa aqui, na verdade não é a respeito do filme que quero falar, mas da reação ao filme nacional que os próprios brasileiros, e como sou de Brasília restrinjo à percepção dos brasilienses, têm do nosso cinema. Antes de ir ao cinema quando eu comentava com alguém sobre o filme a resposta mais certeira era: mas é nacional. Eu ainda não consigo dimensionar essa resposta, o que há de tão terrível no filme nacional? Porque, até onde eu sei, como filmes estrangeiros existem os bons e ruins, entenda que nacional não é e nem pode ser sinônimo de ruim. Filmes como Lisbela e o prisioneiro (2003) e Dois coelhos (2012) são brasileiros de gêneros diferentes e que eu amo assistir! Que são primores, cada um a seu modo. Com roteiros bem trabalhos, enredo, história, cenário. E se por acaso você não os viu, veja-os não vai se arrepender. Voltando ao cinema, por todo o filme, a maioria dos espectadores o encaram como uma piada, absolutamente nada estava bom, nada estava inteligente, nada estava nada. Eu tenho as minhas impressões do filme também, e acho que ele deixou uma história solta, era preciso desenvolver melhor alguns pontos, mas daí achar que tudo no filme é ruim, eu acho demais. São dois pesos e duas medidas, para filmes estrangeiros, e mais do que estrangeiros americanos, o nível de percepção e de exigência é mínimo. Filmes muito, extremamente ruins em questões de enredo e história se tornam obras primas por se falar inglês. Nos filmes nacionais reclamam das cenas de sexo, reclamam de palavrões, deve ser porque isso só acontece aqui, não é mesmo? Ou porque a visão dos cinéfilos fique um pouco turva quando se vê nacionais. Sinceramente, me irritou, só isso. Uma irritação que vem do fato de nós, como brasileiros que somos, nos desprestigiar de tudo que é nosso, de nos colocarmos em um papel tão pequeno. É sempre aquela carinha de "oh, coitadinho é brasileiro". Não é tanto o filme, mas é a postura que assumimos perante ao que é nosso. Não entendo porque a percepção geral se alia a filmes de comédia nacionais, como se o nosso cinema só pudesse oferecer esse tipo de filme. Realmente é só isso que podemos fazer, comédia? Drama não? Suspense não? Aventura não? O brasileiro está fadado ao riso desmedido, solto, frouxo e sem conteúdo. Não é tanto pelo filme, mas pela noção de que as capacidades dos nossos diretores, produtores, roteiristas, atores, cenógrafos só valem para fazer comédia afinal o brasileiro é um povo feliz e ri da própria desgraça a todo tempo, não é mesmo? Não sei bem, mas ao sair do cinema fiquei com um misto de "nossa" com "poxa vida", penso que talvez eu esteja muito sensível ao notar essas reações, quem sabe ninguém esteja depreciando as nossas produções, talvez eu só veja o lado ruim das coisas. Ou, quem sabe, talvez, de tudo o que eu disse alguma coisa tenha um sentido real e você esteja pensando: mas é nacional.
quinta-feira, 11 de setembro de 2014
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A semana era sempre cansativa, sempre. O trabalho era sempre parecido, sempre. O sapato apertava o mindinho, sempre. Ela reclamava da vida, sempre. Mas na sexta-feira, sempre vinha a alegre expectativa do sábado. Ah, o sábado! Amanhã será um dia diferentemente igual, mas sábado é sábado. As sextas-feiras sempre a enchiam de ânimo, pois no sábado, sagradamente, escrevia para um amigo que se fazia distante a algum tempo. Chegou em casa normalmente, pegou a correspondência normalmente, deixou-a na mesa de entrada normalmente, trocou-se normalmente, comeu normalmente, deitou-se normalmente.
- Frida, venha para cama já estou muito cansada vou apagar tudo.
E Frida foi devagar para a cama grande de casal fazer companhia a Laura que já tinha apagado as luzes deixando somente o abajur do criado mudo ligado. Deitou de meias e pijama, se enfiou embaixo do cobertor, Frida se enrolou nela mesma no canto da cama. Antes de deitar e pegar no sono Laura afagou a companheira e lhe desejou boa noite. Apagou o abajour pensando na história daquela semana, o que iria contar, como contar e o pensamento embalou o sono, os olhos se fecharam e o mundo do Sonho foi aberto. Lá os portões eram largos e de ouro igualmente aberto para todos. E sonhando ela se viu em um campo, com montes pequenos, médios, que tomavam o horizonte. Tudo muito verde, tudo muito claro, tudo muito lindo. O céu era bem azul, com nuvens que andavam, no chão uma imensidão de flores. Estava com um vestido branco com pequeninas flores azuis bordadas, descalça sentia a grama acariciando os pés. Admirando a beleza daquela visão, percebeu que no terceiro monte, ali a uns 500 metros havia uma mesa de madeira com um único lugar, e alguma coisa em cima dela. Foi correndo, como uma criança, saber o que tinha lá. Quando pisava o chão borboletas alçavam voo e a envolviam, era uma dança natural e inocente. Chegou a mesa sem muito esforço e se deparou com uma máquina de escrever com um papel em branco. Milimetricamente calibrada para que alguém iniciasse a escrita. Olhou para um lado e para o outro, só havia o paraíso, ela e a máquina. Sentou-se na cadeira de madeira. Era acolchoada com um assento e encosto vermelho, reparou que o braço e a perna da cadeira eram talhados a mão com rigor e delicadeza. Eram formas que desconhecia, mas lhe parecia a coisa mais linda do mundo. Ajeitou-se na cadeira, puxou-a para perto da mesa, colocou as mãos nas teclas da máquina sentindo sua textura, fechou os olhos e respirou profundamente. Ouviu uma música ao fundo e quando abriu os olhos era o despertador das 7h40. Pensou com certa irritação: Não acredito! Desligou o alarme e tentou voltar aquele lugar no sonho, não deu certo. Às 8h, em ponto, iniciou sua rotina sabadal. Levantou-se, alimentou Frida, ligou o som, foi para o banho. Sábado o banho demorava mais, lavava os cabelos, cantava no chuveiro, passava os cremes frescos no rosto. Demorava 15 minutos sendo 5 de banho real e 10 de diversão. O sonho da noite anterior não lhe saia da cabeça, pensava: o que queria dizer? Um campo, mesa e máquina de escrever, eu hein? No som tocava Pedro Luis e a Parede e, no banho, ela fazia a melhor e maior performance para o público que consistia nas carinhas sorridentes feitas no box embaçado e sua gata, Frida, que parecia não gostar no show, pois estava sentada de costas para ela:
- Nossa Frida, você é uma ranzinza mesmo! - A gata nem se moveu.
Saiu do banho com os cabelos compridos enrolados na toalha, outra toalha enrolada no corpo. Cantava a plenos pulmões. Passou pela mesa da entrada para olhar a correspondência seguindo sua rotina sagrada de sábado. Olhou as contas, passando uma de cada vez, viu um envelope diferente, parecia uma carta, certamente era do amigo distante, todo sábado ela se preparava para ler a carta e enviar a resposta. Às vezes, escondia a carta no fundo do bolo de contas, demorava a abrir, fingia não saber que lá estava só para poder se surpreender com a carta. Abriu vagarosamente o envelope, sempre o abria de olhos fechados, gostava de apreciar aquele momento, sentia a textura do papel, pensava por quantas mãos passaram, pensava no seu amigo e quando abria os olhos já estava com o papel aberto em mãos. Quando abriu os olhos desta vez viu que não era a carta do amigo, estava digitado ao invés de manuscrito e não tinha o desenho de jasmim no canto direito. Leu as palavras, levou a mão a boca, tinha no rosto uma expressão de desespero. Não pode ser, não pode ser, não pode!! Pensava enquanto lia. Era verdade, a carta avisa do falecimento do amigo por um ataque fulminante do coração. Sentou na varanda da casa e chorou, um choro mudo. Não acreditava que aquelas palavras eram verdade, sentiu-se perdida, um sentimento de traição:
- Você disse que eu primeiro, seu mentiroso.
Chorava mais pelo susto do que pelo fato em si, sempre teve uma visão clara e serena da morte. Tinha sua própria fé. Quem a visse não diria que era choro, quem sabe uma alergia a fizesse lagrimejar, a água escorria sem sinal de desespero, não havia terror, era somente um choro. Um choro de desculpas, talvez, por não o ver a tanto tempo. Um choro de lamento quem sabe de saber que não veria mais o sorriso divertido percorrendo o rosto familiar dele. Um choro de transbordamento de saudades. Frida reconheceu os olhos da companheira e se alojou em seu colo, uma bola de pelo que dizia no silêncio: me acaricie e deixa a dor passar, vamos compartilhar para ir embora logo. Acariciando Frida, fungando de vez em quando, a mão na boca, a água escorrendo. Essa cena durou pouco mais de uma hora, quando as lágrimas pararam de descer deixou que o vento secasse seus rosto. Segurou a cabeça de Frida, deu-se um beijo e disse:
- Vamos entrar, estou com frio. E a vida...continua, não é mesmo?
A gata se espreguiçou em seu colo e pulou para o chão, roçou em suas pernas e entrou casa a dentro correndo para o arranhador. Ela ainda se abraçou, olhou para o céu e murmurou:
- Depois me conta como é aí.
Laura então deu prosseguimento ao seu dia e embora a ideia da perda martelasse na cabeça vez ou outra tentava não se apegar ao impossível e seguir. Mais tarde, ao começar a noite, recebeu um telefonema. Do lado de lá da linha era dona Antonia, mãe do amigo, fungando, voz miúda, contando o ocorrido, disse que o enterro só poderia ser feito na quinta. Laura disse que iria, mas mentalmente sabia que não.
- Tudo bem, se a senhora precisar de alguma coisa me avisa tá?
- Sabe minha filha, estou precisando sim. Você pode vir aqui amanhã...é, que...eu tenho de ajeitar o quarto que era do meu me...me...menino - E o choro rompeu a garganta da velha - e não dou conta e fazer isso, pelo menos não sozinha. Você pode vir?
Laura respirou fundo antes de responder, sabia que a senhorinha precisava dela, mas não se sentia preparada à perceber que perdeu de vez o amigo.
- Claro dona Antonia, claro. Amanhã chego às 10h, pode ser?
- Claro minha filha! Agradeço imensamente!
Colocou o telefone no gancho e ficou olhando fixamente para ele, parecia esperar por uma ligação. Olhando, olhando, olhando, lembrou do sonho, o que será que aquele sonho dizia? Que sonho mais estranho? Perdida no desconhecimento do sonho ficou olhando para o telefone e só voltou a si quando Frida, querendo um pouco de atenção, pulou em cima do telefone. Laura assustou com a ação recuando para trás:
- Ahh, depois o pessoal fala que gato não é carente - passava a mão pelo dorso da gatinha - ai, ai, me diz Frida pra quê que eu me meto nisso?
A noite se aprofundou, colocou o pijama, a meia, ligou o abajour, convocou Frida para a cama, deitou a cabeça no travesseiro, desligou toda a luz e um pequeno riozinho molhou seu travesseiro trazendo o sono à barco.
Lá estava ela novamente, no mesmo lugar, mesmos montes, mesmo verde, mesma beleza, mesma clareza. Estava também a mesa, a cadeira tudo em madeira. O objeto que não reconhecerá da primeira vez mais agora sabia que era uma máquina de escrever. Ela correu para o lugar, as borboletas reapareceram. Chegou, sentou, sentiu a madeira da mesa, passou as mãos nas teclas da máquina. Olhou para o horizonte e reparou um objeto que não tinha visto antes, lá em frente longe dela a uns 400 metros.
- O que é isso? Parece um, sério mesmo?. Parece uma caixa de correio daquelas de desenho, tem até a bandeirinha vermelha. Mas para quê uma caixa de correio se não tem casa ali.
Ouviu uma música ao fundo e quando abriu os olhos era o despertador das 7h40. Pensou com certa irritação: Não acredito! Desligou o alarme e tentou voltar aquele lugar no sonho, não deu certo. Às 8h em ponto acordou - De novo esse sonho? - seguiu a mesma rotina de sempre. Às 9h40 foi ver dona Antonia. Ela não morava longe de sua casa e por isso foi a pé mesmo, eram 3 quadras martirizantes que a levavam para uma realidade um tanto dura demais, um tanto real demais, um tanto irreversível demais. Ao passar por aquelas ruas, lembrou vivamente da infância, ruas percorridas tantas vezes pela bicicleta, pela bola velha, pelos pés descalços. Sorria silenciosamente das lembranças, traquinagens de meninos. Ela, o amigo, dona Antonia, sua mãe Lucinda. Chegando a casa de destino não chamou a dona de primeira. Primeiro gastou uns minutinhos olhando admirada a arquitetura colonial do sobrado. A casa era branca, um tanto suja pelo anos de vida, mas dispensava um glamour que era impossível de não ser reparado. Tinham dois leões nos cantos guardando a casa e um jardim revestido de rosas e jasmim. Laura ficou fascinada pelos jasmins desde a primeira vez que os viu e se tornou a flor preferida dela, não que as rosas fossem feias tinham sim sua majestade, mas o jasmim tinha uma sutileza de toque, uma delicadeza, uma simplicidade, uma calma e um cheiro incomparáveis. Depois de pensar um pouco, bateu palmas para chamar:
- Dona Antonia?
Ouviu os barulhos da casa e esperou a porta se abrir.
- Ainda bem que você chegou minha filha, estou passando café novo. Venha, entre você sempre foi de casa!
Subiu os cinco degraus que separavam o jardim da casa e entrou. O café já perfumava o ambiente e a mesa da cozinha estava posta com todos os biscoitinhos e mimos da infância:
- Nossa a senhora não perde a mão, mas parece que um batalhão virá comer conosco.
A mesa estava coberta por uma toalha branca rendada, os pratos e xícaras eram conjuntos tão lustrosos que pareciam ter saído da caixa naquele instante, os talheres dispostos simetricamente. Na mesa, em cestos de palha com babadinhos de lado, havia uma imensidão de sabores: rosca de doce de leite, de canela, rocambole de goiabada, biscoito e pão de queijo, peta, leite, pão caseiro, queijo e requeijão vindos da roça.
- Senta minha filha, só vou terminar o café e trago.
- Senta minha filha, só vou terminar o café e trago.
- Sim, senhora.
Laura reparou o rosto abatido na senhora e se lembrou do porquê estava lá, sentou-se na mesa posta para dois. Olhou os arredores da cozinha, tudo que já viveu ali. Se viu menina correndo a procura do amigo que se escondia tão bem que ela desistia de procurar e ia comer as guloseimas que dona Antonia fazia questão de fazer. Uma vez deixou o amigo plantado no esconderijo por tanto tempo que ele se embraveceu e disse que nunca mais ia brincar disso. Ainda bem que o "nunca mais" infantil é só até a fúria passar o que não leva mais do que 5 minutos - Esconde-esconde - pensou- nunca tive paciência para isso.
- Aqui está o café. Adoro esse cheirinho de café novo. Você já comeu?
- Não, ainda nem tinha tomado café-da-manhã.
- Isso é bom, porque a mesa está farta!
As duas comeram sem trocar muitas palavras, cada uma pensando no que fariam juntas, cada uma com a memória do amigo/filho, cada uma com sua saudade desmedida, cada uma com um medo danado de mexer no que, agora, estava assim sem dono. Terminaram de comer e em silêncio sacudiram a cabeça uma para a outra fazendo um gesto de sim. Levantaram-se e a velha segurou a mão de Laura parte para guiá-la ao quarto conhecido, parte para ter forças de ir até ele. Entraram, desataram as mãos e Laura, que estava três passo a frente da velha, reparou que tudo estava no mesmo lugar desde do dia da partida, tudo muito limpo e cheiroso, mas nos mesmo lugares. Olhou para trás a busca da senhora e a viu escorada no portal chorando de cabeça baixa, Laura com a mesma vontade se controlou para a ajudar a velha a não sofrer.
-Oh, dona Antonia, eu sei que é difícil. Eu sei.
Antonia respondia entre fungadinhas curtas.
-Minha filha, eu nunca esperava ficar nessa terra sozinha sem meu menino. Isso não é nem natural...sinto como se metade de meu coração, simplesmente não batesse mais. Como se eu não tivesse propósito de ser aqui. Sou velha, já não trabalho mais, já não tenho menino para criar. Só sou eu e meu jardim, eu e a casa, eu e o vento, a poeira. Do que vale ficar aqui se não tenho mais preocupação com o coração dos outros, se a parte do meu coração não bate mais?
Laura só olhava para a Antonia, o que dizer a uma velha que, no fim das contas, estava de certo modo certa? O que ela poderia dizer para confortar uma mãe cujo o coração só batia em função do filho que era sua alegria? Ela definitivamente não pode dizer nada, mas, por puro impulso, abraçou aquele corpo abatido, fraco, pequeno, magro e triste. Aninhou Antonia nos braços como se agora ela, Laura, fosse sua mãe, como se ela fosse a mãe do mundo a trazer a paz ao coração dos que sofrem.
- Dona Antonia - dizia ainda abraçada - eu não tenho muito a oferecer, mas se a senhora quiser pode morar comigo, ou passar uns tempos lá em casa. Assim não fica vivendo aqui, lugar que traz tanta lembrança...ah e lá em casa a senhora vai ter uma filha para cuidar, minha gata. Pense num bicho arteiro que não para quieto, tenho certeza que vai ficar com a mente ocupada.
A velha deu uma risadinha em meio ao choro.
- Obrigada minha filha vou pensar na oferta.
E ao dizer isso olhava nos olhos de Laura e se podia ver gratidão.
- Então vamos começar a arrumar esse lugar. Como a senhora quer fazer? Quer guardar alguma coisa?
- Vamos assim, as roupas e sapatos que ficaram vão para a doação. Assim como os livros, os cds. Aliás se minha filha quiser algum pode ficar. Depois já arranjei uma casa de crianças para doar a cama, o armário, a tevê. A única coisa que quero mesmo são as fotos dos porta-retratos e aquele cordão com o dente de tigre que ele usava.
- Então tá, já vi que a senhora colocou as caixas aqui, vamos arrumar! Mas para dissipar a tristeza vou colocar os cds dele para tocar, assim lembramos momentos felizes e ele escuta música boa do lado dos mortos.
E assim foi feito, colocou rock pra tocar e foram tirando as coisas do cabide, das gavetas, das prateleiras. E a cada peça que ia para a caixa vinha um história que vazia as duas rirem. Histórias antigas que mostravam uma pessoa alegre e despreocupada, histórias que mostravam um rapaz sincero e, por vezes, inconsequente. Histórias que reconfortavam as duas como se a vida daquele ser, com as palavras das duas, o mantivesse vivo, ali olhando para elas, contando suas próprias histórias. Laura passou o dia com Dona Antonia, entre arrumação do quarto e quitutes sempre ao som da lembrança dele.
No almoço, estrogonofe de frango, Laura contou a Dona Antonia, entre uma garfada e a alegria do sabor, o sonho da máquina de escrever.
-...e aí eu vi uma caixa de correio, mas não sei o que quer dizer e nem sei dizer o porque não consigo escrever na máquina de escrever.
- Estranho né? Quem sabe você tenha que passar uma mensagem para alguém, mas ainda não está preparada para escrever. Não sei, mas a caixa de correio deve estar lá pra você mandar alguma coisa para alguém.
- Hum, eu não estou preparada porque nem sei pra quem é. Sorriu a menina.
Ao final do dia, caixas fechadas, trabalho feito. Alguns livros e cds a mão, Laura se despediu da velha que parecia estar melhor. As bochechas lhe iam mais coradas, talvez o coração tenha aumentado a intensidade do toque.
Voltou para casa com lembranças que nem sabiam ser suas e histórias novas para lembrar. Chegou exausta do dia, abriu a porta e Frida a recepcionou com um misto de saudade e fome.
-Oi boneca! Já sei, esqueci da sua comida.
Os olhos de Frida confirmaram e a pequena companheira saiu correndo para a tigela. Alimentou a pequena faminta e se despiu para um tão sonhado banho. Ficou lá por vinte minutos, a água escorrendo quente em suas costas dava uma sensação de alívio, enquanto estava no box sua mente refletia o que Dona Antonia tinha dito sobre o sonho: mensagem para alguém. Mas quem ia querer receber minha mensagem, ainda mais em sonho, pensava naquele argumento sem entender direito. Sentou-se um pouco a frente da tevê assistiu qualquer coisa que passava, Frida enrolada ao seu lado.
- Ahhhhhhhh - dizia enquanto se espreguiçava - vamos para cama sim! Ainda bem que amanhã é feriado.
E assim foi, pijama, meias, cobertor, abajur ligado, Frida enrolada nela mesma no canto da cama, abajur apagado, sono profundo.
E lá estava ela, nos montes verdes, no lugar claro, as borboletas, a mesa, a cadeira, a máquina de escrever, o papel. Olhou para frente e a caixa de correio de desenho ainda estava lá.
- Ai, ai, ai! Como é que vou mandar alguma coisa para lá? E quem é mesmo que vai receber isso?
Sentou na cadeira de madeira e apoio os cotovelos na mesa, as mãos segurando o rosto e um bico imenso como de uma criança contrariada.
- Mas que droga, vou morrer aqui sem saber o que fazer.
Olhava aquela caixa de correio ao longe com uma raiva infantil maldizendo o pobre objeto que nem ao menos podia se defender. Até que avistou alguma coisa em movimento, indo em direção a caixa. Era um homem alto vestindo um terno azulado e gravata borboleta.
- Oxi, quem é...
E não conseguiu terminar a frase, porque viu mesmo de longe, mesmo sem tanta nitidez, que o rapaz alto era o seu amigo.
- Jorge!!!
Gritou se levantando da cadeira e começou a correr em direção ao amigo. Enquanto tentava correr via Jorge fazer que não com as duas mãos e a cabeça reparou que mesmo depois de tanto correr não saia do lugar estava lá ao lado da mesa.
- Eu não tô acreditando que o Jorge está bem ali e eu nem posso ir lá falar com ele. Mas que droga!
Sentou-se novamente com os braços cruzados e um bico maior ainda. Olhava para Jorge que parecia rir da sua cara.
- Continua um ridículo, mesmo depois de morto!
E ele fazia movimento com o dedo apontando para a caixa de correio freneticamente. Ainda levou uns instantes para que Laura entendesse: "Estranho né? Quem sabe você tenha que passar uma mensagem para alguém, mas ainda não está preparada para escrever. Não sei, mas a caixa de correio deve estar lá pra você mandar alguma coisa para alguém".
-Claro! Dona Antonia, a senhora é uma linda!!
Endireitou-se na cadeira, passou as mãos nas teclas e parou puxando as mãos para si. Tá - pensando - mas o que eu vou escrever? O que eu iria escrever no sábado? A mão voltou as teclas e tatibitati começou.
Mundo do sonhos, algum dia/certo mês/anoenoino
Querido Jorge,
Querido não que isso é coisa de quente fresca, insuportável Jorge. Essa semana aconteceram várias coisas chatas como sempre te conto. É sempre assim por essas bandas daqui. Você sempre vem com histórias mirabolantes de como conheceu um milhão de pessoas, e lugares, e coisas e eu? Bom eu fico aqui ouvindo suas histórias e imaginando se eu teria a coragem de sair pelo mundo conhecendo tanta coisa que nem sei. Será que eu, pacata moça da cidade alta, conseguiria me aventurar pelo mundo sem saber direito o que encontrar? Eu que sempre, ou quase sempre, tenho um plano bem bolado, bem simétrico, bem bonito a seguir? Será que eu saberia me lançar ao desconhecido do mundo? Who knows? O único desconhecido que venho conhecendo é o mais íntimo de mim e, sinceramente, não tem sido fácil. Às vezes me deparo com buscas e pensamentos que me parecem estranhos, que parecem não serem meus. Talvez os anjos teem me soprado para ver se consigo atingir a direção certa, ou quem sabe o demônio é meu amigo e tem me mostrado caminhos tão acertados...só para implicar com Deus e mostrar que ele também é legal. As bandas brasileiras continuam com as mesmas crises, políticos, religião, preconceitos sem medida e me vem aquela vontade de ir embora. Me parece que a cada passo dado para frente, um salto enorme é feito no sentido inverso. Você sabe que não sou pessimista e continuo a não ser, mas vai dando aquele abatimento, aquela impaciência. As discussões não progridem, as ideias não diversificam, as pessoas parecem mulas de carga. "O bispo mandou eu vou fazer, o pastor mandou eu vou votar, o papa falou eu vou me jogar da ponte com uma pedra amarrada no pé, o pai de santo disse eu vou sair arrebentando a cara dos outros", sério esse povo só tem cabeça para enfeitar. Sempre foi assim, pensar dá trabalho não é mesmo? Mas deixemos as besteiras de lado. Ah, sim!! Aconteceu uma coisa muito estranha no sábado, um amigo meu morreu. Pois é! Foi um susto danado pra todo mundo. Eu me senti terrivelmente perdida, fazia anos que não o via embora soubesse tudo de sua vida, embora nos correspondêssemos quase semanalmente. Ontem estive com a mãe dele e, por mais que achasse saber muito dele, descobri histórias engraçadíssimas a respeito da infância e personalidade daquele menino. É engraçado pensar que por mais próximo, por maior que seja o contato, nunca se sabe ao certo quem é a pessoa que nos acompanha. Mesmo com todo o tempo de convívio as surpresas aparecem. Que pretensão achar que conhece o íntimo de um outro ser, se nem mesmo ele sabe? Nossa, como estou filosófica. Vou até pegar meu cachimbo de bolhas e meu monóculo e vamos falar a respeito da essência do ser, que tal? Quem sabe consigamos esmiuçar o humano em sua superfície mais rudimentar e sensível, ou (e o que é mais provável) nos embriagaremos de brigadeiro deixando a discussão para depois e vendo um filme. Aliás, ainda não assisti Rock Balboa e aquele quebra-cabeça continua no meu armário te esperando. Como está o apartamento aí? Na última carta me disse que tinha dado chabu no aquecedor. Se bem que me parece...sua casa é outra agora. Mande-me notícias sempre que puder, toda vez que vier aqui te escrevo, ok? Sem melosidades, mas cheia de beijos e abraços!
Laura - Lariema
Quando terminou a carta ela sumiu e a caixa de correio de desenho levantou a bandeirinha vermelha, Jorge pegou o papel que estava fechado em envelope. Laura acho aquilo lindo, felizmente poderia continuar com as cartas que tanto lhe davam prazer. Ao lado da mesa em que estava sentada apareceu também, brotada do chão, uma caixa de correio de desenho, só que a sua bandeirinha era roxa.
- Claro, minha cor predileta.
E gritando para Jorge:
- Deixa de ser preguiçoso e manda logo alguma coisa.
A bandeirinha roxa se levantou, ela abriu a caixa de correio e lá havia um jasmim com um bilhete.
"Oras, nunca fui preguiçoso! Cuide de Dona Antonia pra mim, ela precisa de todo seu carinho. Diga-lhe do sonho, diga que estou bem, só com um pouco de saudades. Diga para ela achar outros tantos meninos para fazer o coração bater novamente. Dê a ela um motivo de continuar. E quanto a você, menina perdida, sem melosidades, mas cheio de beijos e abraços! Já mando mais notícias."
E naquele dia ela acordou, não pelo despertador, mas pelo cheiro forte e doce de jasmim. E naquele dia ela acordou com certezas, Jorge não estava exatamente morto.
segunda-feira, 11 de agosto de 2014
E o Rio?
Esse foi um final de semana
diferente e, por isso mesmo, venho diferente, falando assim eu mesma, em 1ª
pessoa. Tive a oportunidade de acompanhar uma viagem ao tão iluminado Rio de
Janeiro, espaço geográfico quase mítico, quase como o misterioso Triângulo das
Bermudas. Quem vive lá não larga, quem visita quer ficar. Essa movimentação
interior, que move os corações daqueles que estiveram ou estão no Rio de
Janeiro, me inquietou. Afinal de contas o que há de tão esplendoroso nesse
lugar? Confesso que viajei com ares de Sherlock Homes para desbravar as pistas
do movimento universal de amor àquela cidade. Na mala levei minha lupa e meu
cachimbo de soltar bolhas e, claro, um biquíni para as horas livres de detetive
[todos somos filhos de Deus, não é?]. Todos sabem [e os que não sabem
saberão] que o Rio de Janeiro é palco de formosura e por lá desfilam grandes
belezas. Temos morros, pedras gigantescas, grandiosidade aterradora para
qualquer ser humano mais sensível. Temos as belezas arquitetônicas colocadas
ali, milimetricamente pensadas para que o encanto envolvesse toda a atmosfera
do lugar. São verdadeiras esculturas ao ar livre. Temos a orla que não teria
como não ser divina envolta de tanto mar. Temos os sorrisos bronzeados dos que
passeiam pelos calçadões e parecem ter se perdido do mundo real por esbanjar
tanta alegria. Temos muitos e muitas com poucas roupas, por causa do calor
claro, desfilando corpos normais, vivos, belos, ostentando sensualidade e calor
[mesmo que sem querer] por poros abertos pela maresia. Ah, uma paixão mais que especial,
e bastante íntima, temos o sotaque carioca. Ai, o sotaque! Não sei o que há
naquele jeito mole de falar que me envolve de ternura e graça e sinto vontade
de ir para praça escutar o povo a falar. A falar qualquer coisa, até um
xingamentozinho, uma briguinha na rua, um “vai tomar no cu” do motorista de
coração e carro fechado, dito sem medida. Coisas de quem se formou em letras e
se apaixona sem medida pelas peripécias da língua. Em contraponto, como toda
cidade real, temos problemas também. Vi assalto, tive desconfianças dos outros,
tive medo, andei com poucas coisas, não chamei a atenção, fechei a cara [como
se isso me assegurasse de alguma forma], olhava para todos os lados, tive
atenção redobrada. Mesmo com a lupa sempre a postos e o olho aberto,
arregalado, não conseguia entender o porquê daquele cenário ter sido cantado
por tantos grandes nomes. Não conseguia entender o porquê de terem tantos
textos belíssimos, de fazer qualquer um suspirar, escritos para aquele lugar,
por aquele lugar. Não conseguia entender o porquê de tantos defensores
fanáticos da cidade. Qual é o mistério mítico do Triângulo do Rio de Janeiro?
Repare que eu disse: não conseguia. Hoje eu consigo. Fui convidada para um
jantar no clube Caiçaras, que fica em uma ilha [um pedacinho de terra] no lago
Rodrigo de Freitas. Ao andar pelo clube conhecendo suas instalações, passeando
por detrás das quadras, um estrondo de luminosidade guiou meus olhos, minha
lupa e meu cachimbo para a compreensão de tudo. Então era por isso! Lá atrás
das quadras, longe dos meninos gritando, longe das bolas chutadas, havia uma fenda
para um universo silencioso e convidativo. Ao atravessar para este lugar pude
ver o que outros tantos antes de mim viram e entendi os versos, as odes para
aquela cidade chamada de maravilhosa. Do lado de lá do portal as lâmpadas dos
postes estavam apagadas possibilitando que minha visão se expandisse para o que estava ao meu redor. Vi um céu enegrecido, distante, com uma lua [quase] cheia
e estrelas. Vi no chão uma cidade iluminada com toda sua pulsação, quase
caótica, mas silenciosa como se todos se movessem ensaiados em uma mímica
ritmada. Vi bem lá no alto o Cristo Redentor com seus braços abertos para uma luz levemente arroxeada.
E, por fim, vi que entre o chão e o céu estava o contorno daquelas pedras,
montanhas de sublime beleza que se destacavam do céu negro, contorno cinza
enevoada que trazia uma sensação de divinizena. Era a substância de Deus na
montanha, era a substância da montanha em Deus. Sabe aquela coisa? Eu estou
aqui, você sabe que estou, mas só posso te mostrar minha sensação, minha borda,
minha essência. E, naquele momento, simplesmente não importava que a ilha
ficasse em águas tão poluídas que não se podia nadar, não importavam os crimes,
não importavam as desconfianças, porque, naquele exato momento, eu pude ver a
criação do mundo, da natureza e do homem em um breve lampejar de clareza. Não
importava nada, a não ser parar e contemplar aquela grandeza [in]finita. Hoje
consigo entender os versos de amor dos meus cantores prediletos e, por já ter
descoberto o mistério, deixei minha lupa por lá mesmo pelas bandas de
Copacabana, talvez a tenha esquecido em Ipanema, Botafogo, quem sabe na Lapa, no Arpoador ou
no Catagalo, fixada em algum castelo de areia, em algum baile funk, em alguma mesa de botequim, para que quem sabe, quando volte, possa conhecer outros tantos
mistérios da cidade que é também para mim maravilhosa.
"Vai, meu irmão
Pega esse avião
Você tem razão de correr assim
Desse frio, mas beija
O meu Rio de Janeiro
Antes que um aventureiro
Lance mão"
segunda-feira, 4 de agosto de 2014
Ana e Frida
Ela se preocupava um pouco Ana
geralmente não demorava a voltar para casa e já passava das nove. Não quis
pensar em nenhuma tragédia, mas o coração que ama só enxerga besteira. Tentou
não pensar naquilo, logo, logo Ana estaria em casa. Realmente não tardou muito
e ouviu a chave na fechadura, mexendo rigidamente para o lado direito, vencendo
o segredo e abrindo a porta. Frida se ajeitou e virou os olhos para porta:
– Até que enfim!
Enquanto Ana entrava dizia:
– Eu sei, eu sei, eu sei, estou
atrasada. – Fechou a porta e a trancou, entrou pela sala e olhou para Frida –
Desculpa o atraso e para de me olhar assim! Já estou aqui!
– Fiquei preocupada, o que
aconteceu?
– Desculpa, é que encontrei uma
amiga, a Helena, lembra-se? Ela já veio aqui. Encontrei com ela e ficamos
batendo papo ali no shopping e quando vi já eram essas horas.
Ana se aproximou de Frida e a
beijou. Foi entrando no quarto, guardou a bolsa, sentou-se na cama, tirou o
sapato que estava apertando o mindinho.
– Meu Deus, eu ainda fico sem
esse dedo! E aqui, aconteceu alguma coisa? Como foi seu dia?
– Você sabe como é, né? Minha
vida é um tanto monótona. Dormi um pouco, pensei um pouco, nada fora do comum.
– Hum, é mesmo?
– É sim.
– Nossa, eu estou morta de fome.
Vou fazer um rango, está a fim?
– Sempre!
Caminharam para a cozinha, Ana
pegou as panelas e o macarrão. Frida ficou junto dela, escorada na bancada
americana que dava para a sala.
- Sabe Frida, até que foi bom
encontrar Helena assim de surpresa.
- Por que?
- Meu dia estava tão triste, tão sem
graça. Tive que ouvir cada asneira, cada idiotice, cada bocozisse.
- Por que?
Ana olhou para a companheira a
expressão de dúvida que Frida fazia estava tão bem desenhada que fez com que
Ana risse.
- Para de rir de mim!
- Sua cara de dúvida está tão marcada
que se eu fosse você virava atriz e ficava rica. – Ana riu novamente –Continuando, hoje foi um daqueles dias de cão.
- Sei, aqueles bichos feios!
- Fiz um cronograma de tarefas
que deveria cumprir durante o dia, mas não consegui finalizar graças aquele
B-O-C-Ó do meu chefe que não para de fazer reunião para nada. Sabe nada? Então,
nada. Minha mesa entulhando de tanto papel, relatório, avaliação, requerimento,
processo, atualização, decisão e não consigo ficar sentada 5 minutos em paz.
Arh!!!
Enquanto falava sobre seu dia Ana
aumentava a voz, virava as mãos como se arrancasse alguma coisa do vento,
sacudia a cabeça, fazia bico, mudava de voz. Frida, que já conheci Ana fazia tempo, preferiu não expressar opinião. Sabia que ela estava irritada, sabia que
não era hora de falar só ouvir, sabia que em breve isso passava e sabia que,
por mais brava que estivesse, não conseguia ser uma pessoa dura. Ana nascera
para ser doce e Frida sabia disso. Depois do jantar reclamão e do carinho dato
pelos olhos atentos Ana abaixou a guarda e decidiu que não pensaria mais nisso.
- Deixa para lá, não é? Só porque
meu dia não começou bem, não quer dizer que não vai terminar bem. Que tal filme largada no
sofá?
- Claro!
Assim decidiram, assim fizeram.
Ana sentou-se meio deitada no sofá, Frida deitou em seu colo e sentiu o calor
da mão que lhe acariciava com cuidado e amor. Frida sabia que era amada e que
Ana nunca a machucaria e que, por mais difícil que fossem os dias, tudo
passava. Amor, amor era assim mesmo e o delas era puro e verdadeiro. Não
importava o que dissessem sobre o assunto, não importa o que os outros achavam
– “Eu hein, que coisa estranha” –, as duas sabiam que eram uma da outra
como predestinação. Carinho se cria, amor tem-se ou não. Ana havia a acolhido
em um momento muito difícil, estava sozinha, triste, desiludida, largada no mundo, mas a partir
do momento que seus olhos se cruzaram sorrisos nasceram em seus corações. Era
mais do que gratidão, era mais do que carinho, era um amor sem medida, um amor
que cuida. Pensando nessas coisas, de olhos fechados, ao receber as carícias
esperadas por todo o dia, Frida adormeceu. Quando abriu os olhos novamente já
devia ser umas 2h da manhã. Espreguiçou-se, levantou, acordou Ana:
-Vamos para cama?
- Hum, já vou. Deixa eu me
colocar no lugar. Ai meu pescoço, fiquei toda torta.
Ana caminhou meio cambaleando
para cama, colocou um pijama, ajeitou as cobertas, apagou a luz.
- Você vem?
Disse Ana.
- Só até você dormir, sabe que a
noite eu não tenho sono.
Ana adormeceu sem saber o que
Frida dizia. Ana nunca saberia o que ela dizia e Frida nunca saberia que não
era entendida. Frida, a gata vira-lata adotada a pelo menos 3 anos, não sabia
que a dona não a entendia, imaginava que suas conversas eram feitas com
completude. Ana, que sempre conversava com a companheira felina, imaginava o
dia em que seria respondida pela mais compreensiva amiga que já teve. Elas não se
comunicavam verbalmente, mas seus corações eram próximos, unidos, se correspondiam. Carinho se
cria, amor tem-se ou não e elas tinham.
sexta-feira, 1 de agosto de 2014
B-day
Se você veio aqui atrás de uma história talvez se decepcione um pouco. No dia de hoje a criatividade me faltou e eu me lembrei de uma história que não conheço o fim e que, na verdade, me lembro pouco. Nesse mesmo dia 1º de agosto nos anos 90 uma mãe, entre várias na Terra, sentia as dores de colocar no mundo vida nova e, lá pelas 11h e pouco, nasceria mais uma alma para compor esse mundo. Era uma vez eu, menina de olhos fechados, bochechas grandes e cabelo liso. Cheguei no mundo cheia de amor ao redor, primeira filha, primeira neta, primeira pequena a povoar os braços da família. Nome escolhido pela mãe: Mayara. Foi dado o start da vida. De lá pra cá muito e pouco aconteceu, afinal de contas não sou assim tão velha. Brinquei, chorei, vi meus pais se separarem, senti frio, tive irmãos, viajei, sonhei com ares de artista, imaginei o mundo de Jonh Lennon, me apaixonei por poesia, por música, por arte, sofri amores, senti todas as dores do mundos, fui feliz, fiquei rebelde, quis e não consegui, tentei e deu certo, rezei, pedi, me esforcei, acreditei, corri, rolei na grama, ganhei presentes, dei presentes, filosofei, calculei, escrevi, cresci. Tenho deixado a vida me viver, me experimentar, me permitir, me mostrar. Provavelmente você não me conheça, ou conheça pouco. Mas não se incomode com isso, eu também sei pouco sobre mim, até porque sou muito nova para ter consciência. Só tenho pensando na minha real essência a pouco tempo, só tenho me descoberto como ser pulsante em poucos anos. Não deu tempo ainda para vasculhar tudo de mim, mas vou seguindo a busca amiúde, sem pressa, conhecendo cada ponto fundo a fundo. Sei mais de mim hoje, saberei mais ainda amanhã. Acordo no dia do meu aniversário com reflexões profundas do ser, do mundo, da vida e me vem uma vontadinha de chorar de tudo e nada ao mesmo tempo, felicitações me apitam no celular, ligações intermináveis e maravilhosas, um sorriso :) As reflexões se dissipam, hoje não é dia de chegar ao fundo do mundo [de mim?]. Penso que tenho muita propriedade para dizer que sou feliz, que minha vida é boa e que tenho todos os maiores tesouros do mundo. Me animo, me crio, me governo, me deixo ser levada. Essa sou eu: menina pequena de sonhos grandes, coração perdido, mas sempre a postos para ajudar. Essa sou eu: mulher, gente grande, forte, intensa, impaciente. Essa sou eu: tipo escritora, que gosta de mostrar um punhado de sonho em letras. Essa sou eu: alma velha, com a profundidade de tudo em si, com a vontade de acreditar nas mudanças, com a certeza de que lá vem novidade. Essa sou, bom, pelo menos, por enquanto.
segunda-feira, 21 de julho de 2014
O preconceito nosso de todo o dia
Na última semana estive assim
pensando em um tema polêmico [muito mais do que mamilos]. Aconteceram vários
fatos que me fizeram manter a cabeça nesse danado do preconceito e permanecer
refletindo. Primeiramente minha avó me mandou uma imagem pelo Whatsapp, sim a
minha avó usa o Whatsup [assim como Facebook, Youtube etc] falando que eu
deveria arranjar um jeito de dar fim naquela falta de gosto sem medida. Era a
imagem do ex-presidente Lula vestido como uma mãe de santo do Candomblé com a
seguinte frase: “O céu também não quis e enviou-o para mim. Eu também não o
quero, por isso o envio para você...Fique com ele...é todo seu!!!! Cuidado...quem
não repassar, fica com ‘o encosto...” E a mensagem da minha avó dizia: “Mamá [apelido
que tenho desde a infância], desculpe se lhe encaminho esta mensagem, mas
fiquei com medo e achei que você poderia dar um fim adequado para este mau
gosto sem prejudicar ninguém”. A primeira coisa que veio a cabeça foi o fato de
minha querida avó achar que eu posso mudar alguma coisa, talvez ela enxergue em
minha a nova geração, os modificadores do mundo. Bom, eu não tenho poderes
mágicos, mas acho que falar sobre o assunto já é mudar alguma coisa. Ela sabe
que sigo uma religião de matriz africana e que, por mais que não seja o
candomblé, de alguma forma eu conseguiria entender o quanto aquilo é ofensivo. O
segundo pensamento é que ela, uma pessoa que a vida toda seguiu a tradição
católica e que já está em uma idade em que poucos se importam em mudar, foi
quem viu um problema naquela imagem e texto, foi ela quem reparou que isso é de
mau gosto, foi ela quem me chamou a atenção.
E tudo isso efervescia em minha
mente quando me deparei no Twitter com um rapaz que, por não achar os óculos,
estava xingando a empregada doméstica dizendo que a culpa só poderia ser dela.
Fiquei aterrorizada com aquilo, um rapaz tão jovem talvez mais novo que eu
tratando uma pessoa assim. E, com isso, tive minha primeira briga no Twitter.
Confesso que me diverti bastante, após cada resposta sem argumentação vinda do
rapaz.
O acontecido me fez pensar ainda
mais no assunto, nos nossos preconceitos que ficam acorrentados como feras
selvagens, puxando a coleira, latindo, uivando, mostrando os dentes, esperando
uma única brecha para se libertar das correntes e atacar.
Para fechar o combo de
acontecimento que me impulsionaram a escrita, estava passeando pelo Facebook e
havia uma publicação mostrando o trabalho que um fotógrafo francês fez nos
bailes funks cariocas. Li a entrevista, vi algumas das fotos e sem querer,
quando voltei à primeira página, esbarrei no botão dos comentários. Antes não
tivesse acontecido, pois o que eu vi ali foram atrocidades contra pessoas,
contra opiniões, contra gosto. Vi comentários que me assustaram, que me
enojaram, que me fizeram ter um pouco menos de fé no mundo. E hoje, sábado às
8h27 da manhã, penso que talvez tenha chegado a uma conclusão não fechada de
tudo isso.
Penso que o preconceito, o porquê
dele existe, está em nosso sentimento mesquinho de superioridade contra os que
não são do nosso “grupo”. Não me parece outra coisa a não ser se colocar em uma
posição de prestígio em detrimento do outro. Por que é bom fazer piada com um
candomblecista? Simples, “porque sou cristão acredito no Deus real, verdadeiro
e único, não sou que nem essa gente que cultua um monte de coisas erradas,
Deuses dos mais variados. Isso nem é uma religião, isso é um culto sincrético
de selvagens”. Resultado eu sou superior e tenho o direito de impor minha
religião e não importa se vou ridicularizar o outro, porque o verdadeiro Deus
está comigo. Você talvez olhe as minhas palavras e pense que estou exagerando,
mas somente aquele que vive o preconceito sabe que, na verdade, os argumentos
são bem piores. E, sim, isso se aplica a tudo. Por que é bom fazer piada com
negro? “Oras, porque na África, de onde essas ‘pessoas’ vieram, vive-se um regime
de selvageria, nunca foram civilizados corretamente, não tem capacidade de
assimilar tal coisa. E, como um povo que era maioria se deixou escravizar?
Porque todos nasceram para servir.” Por que é bom fazer piada com o gordo?
“Quem sabe assim ele faz alguma coisa com aquela pança toda. É simples, faz que
nem eu e vá para academia, as pessoas ficam gordas porque querem. Olha, apesar
de ser gorda, ela tem o rosto tão bonito bem que podia criar vergonha e
emagrecer.”
E assim, vamos repetindo
indiscriminadamente argumentos que não tem base nenhuma para nada. Repetimos
preconceitos imbecis e nem paramos para pensar. “O funk não é cultura, é um
lixo, deveria ser banido do mundo”, mas quando você, classe média alta, está em
uma festa e o DJ contratado toca o som que nasceu no morro todos se levantam
das cadeiras e rebolam loucamente até o chão. Só que na sua festa é legal fazer
isso e no baile funk você chama de depravação vulgar.
Você diz que não tem preconceitos
com negros e que na sua casa até tem uma empregada negra, todavia, intimamente,
você se acha superior aquela pessoa que limpa a sua casa, você tem um bom
emprego, é alfabetizado, sabe argumentar. Mas, se pensarmos um pouco, ela te
põe “refém” em sua casa. Sem ela você não consegue ter a capacidade de procurar
algo e achar. Sem ela você não sabe ligar a máquina de lavar, fica na dúvida de
quando sabão usar, sem ela sua casa vira um chiqueiro. E, por mais que você
reclame e xingue, nunca vai dispensá-la, pois além de fazer um bom serviço
doméstico, provavelmente, ela é quem melhor cuida de você.
Por que não achar graça da piada
feita com o seu grupo? Porque você vê a piada e pensa: mas não é assim. Eu sou
loira, mas não sou burra. A diferença é que quando eu erro é porque sou loira,
quando outro erra é porque não viu direito. Eu sou mulher, mas não sou má
motorista. A diferença é que quando fecho um carro é porque sou mulher e quando
ele fecha um carro é porque não viu no retrovisor.
Quando eu, Mayara Sampaio, erro é
porque sou Umbandista, porque cultuo coisas do demônio, porque não aceitei o
Deus real em meu coração.
Quando eu, Mayara Sampaio, erro é
porque tenho amigos gays e eles são má influência para mim, pois vivem em um
mundo de promiscuidade lasciva.
Quando eu, Mayara Sampaio, erro é
porque sou mulher e não sei direito meu lugar. Porque fui criada por uma mulher
independente [separada, cruzes!!] que me ensinou a ser, da mesma forma
independente. E mulher boa é aquela que não tem opinião própria.
Quando eu, Mayara Sampaio, digo
que não quero ter filhos tenho que ouvir uma multidão acendendo as tochas e me
perguntando “E quem é que vai cuidar de você na velhice?” E se me atrevo a
mencionar que, se filhos tivesse, penso muito mais em adoção a multidão em
polvorosa me amarra na fogueira apontando o dedo e proferindo barbáries.
Quando eu, Mayara Sampaio, erro é
porque uso roupas masculinas pareço um moleque e nunca vou casar, nunca vou
prestar para ser esposa.
Quando eu, Mayara Sampaio, erro é
porque sou ridícula ao não comer carne por uma questão de princípios, afinal
são só bichos e eles tem que morrer porque somos mais fortes.
Quando eu, Mayara Sampaio, erro
não é porque sou humana, porque tenho inseguranças, porque tenho medos, porque
tento experimentar o mundo de uma forma diferente, não é porque estou
experimentando a vida, não é porque quero viver, não é porque quero ser única,
quando eu estou errada é porque não sou a cópia exata de você.segunda-feira, 14 de julho de 2014
Amigaaaa!!!!!
Tinha acordado feliz da vida,
finalmente tinham saído a sós. Ok, não foi exatamente como ela planejou, mas, de certa forma, foi uma noite maravilhosa que a deixou
empolgadíssima. E, como toda boa mulher, ela estava agoniada, aflita,
agonizando para contar a [melhor] amiga todos os detalhes do que tinha
acontecido. Combinou com ela que contaria T-U-D-I-N-H-O na hora do almoço. E,
como você pode imaginar, foi a manhã mais e mais e mais e mais e mais e mais e
mais....arrastada e demorada de toda a sua vida!!! Por mais que o trabalho não
faltasse, e a sua mesa cheia de papéis e bagunças denunciava o excesso, os
minutos estavam sendo contatos um a um e nenhuma distração no mundo mudaria
aquele martírio. As vezes parava olhando o relógio e lembrando do que tinha
acontecido, do encontro, sorria mordendo o lábio inferior e retornava a si.
Finalmente [aleluia!] deu o
horário de saída, pegou a bolsa e foi. Desceu o elevador com a euforia no
coração, foi ao shopping. Pediu comida e estava esperando, quando viu:
- Amigaaaaaaaa!!!
- Amigaaaaaaaaa!
A alegria eufórica e indefinível
estava instalada.
- Me conta tudo, quero saber
tudo!!!!
- Claro, estou doida pra te contar.
Escuta, ontem estava saindo do escritório e recebi a mensagem. E aí, vai fazer
alguma coisa? Respondi que não, estava indo para casa sem programas. Por que?
Ah, porque se você quisesse a gente podia fazer alguma coisa. É mesmo o que
você sugere?
- Nossa, mas você se faz de
difícil!! Doida pra pular no colo alheio e fazendo doce. Hahaha!
- Oras, mas é claro! Tem que rolar
um charme da minha parte, você me conhece!
- Ai, ai, continua.
- Marcamos que ele ia passar lá em
casa pra me buscar, mas, sinceramente, só ia sair porque era com ele. Afinal de
contas, o diretor tá na empresa, minha mesa tem uma brotação instantânea de
papel e eu uma pilha de nervos, fiquei até com medo de estragar alguma coisa.
- Ah é, você nervosa é um saco! Só
te aturo pela amizade! Hahaha!
- Ah tá, como se fosse ótima de
aturar.
- Ihhh, ficou ofendida! Credo é
brincadeira, sua boba!
- Tá vendo como eu tô nervosa. Mas
enfim, deixa eu continuar.
- Tá, continua.
- Fui pra casa, tomei um banho,
escolhi a roupa, me vesti, detestei, me vesti novamente, detestei, me vesti de
novo, detestei e voltei para o primeiro look. Que foi o que eu menos detestei,
aliás estou precisando de roupas urgente. Mas minha personal style não tem
tempo para mim, né?
- Oh, meu Deus! Faz tempo que não saímos para meninice mesmo. Estou tão
atarefada que me dá preguiça de fazer qualquer coisa. Tenho até comprado roupa,
sapato, maquiagem pela internet, por pura falta de coragem.
- Sério? Nossa, então você tem
que me mostrar os sites. Assim você vai lá pra casa e podemos fazer a feira sem
sair do sofá. E ainda rola um almocinho, adorei!
- Tá, tá, mas foca na conversa. O
que rolou?
- Ah é, então me vesti e fiquei
esperando. E ele enrolou, enrolou, enrolou. Passou uma hora do combinado e eu
já tinha achado que tinha tomado o toco. Até cochilei no sofá.
- Putz, sério? E aí?
- E aí a campainha tocou.
- MENTIRA!?
- Verdade!!! Tipo, eu tomei um
susto, tava cochilando. Demorei a entender que era a porta. Levantei descalça e
fui ver quem era. Olhei no olho mágico e vi uma pessoa segurando um buquê de
flores, rosas vermelhas, de forma que tampava o rosto.
- Uhhhh, que chique!
- Eu escolho bem, oras! Hahaha! Não
tive nem tempo de me olhar, saber se estava com a cara amassada, nada. Ajeitei
o vestido mais ou menos e abri a porta. Ele tirou o buquê do rosto, percebi que
na outra mão estava um vinho. Ele pediu desculpas pelo atraso e que sabia que
estava tarde, mas que queria muito me ver então arriscou mesmo assim.
- Eitaaa!!! E aí???
- Aí que ele entrou, a gente ficou conversando,
decidimos pedir uma pizza, papo no sofá, lá, lá, lá.
- Dá pra pular para parte que interessa?
- Hahaha, então, aí que tá. A pizza
chegou a gente comeu, tomou o vinho, continuou conversando e acabou pegando no
sono, ali mesmo no sofá.
- O QUE???? Você tá de sacanagem, né?
- Não, não. Estávamos os dois
cansados do trabalho, com a pança cheia de pizza, vinho...caímos no sono, no
sofá, acordamos hoje. Acordei de susto, com o despertador tocando. Acordamos,
nos olhamos e começamos a rir. Tomei banho, ele se ajeitou lá em casa, tomamos
café juntos e fomos cada um trabalhar.
- Credo, eu não acredito que você
me deixa a manhã toda agoniada para contar que não aconteceu absolutamente
NADA! Mas que sem graça!
- Sem graça nada, já recebi outra
mensagem. “Agora que já dormimos juntos, que tal fazer alguma coisa acordados?”
Ou seja, #hojetem!!!
- Hahahaha, você não existe! Desejo
que seja melhor essa noite, ok? E vê se faz coisas mais legais para eu ter uma
boa história para ouvir, ok??? Cheio de sexo selvagem e libidinoso, pode ser?!
- Bom, pelo menos é o que eu
pretendo. Afinal de contas, não pode ir pra cama no primeiro encontro e esse
vai ser o segundo! Hahaha!!
- Hummmm, então tá. Deixa eu voltar
pro trabalho!
- Eu também! Beijo, sua linda!
- Beijo sua doida!! E juízo, ok?
- Esse eu tenho de sobra.
Então ela saiu do Whatsup,
bloqueou o celular e voltou ao mundo real.
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