Das experiências da minha vida,
uma delas me ensinou mais do que eu imaginava. Certa vez, estava em uma roda de
pessoas, alguns conhecidos, outros não até que chegamos ao assunto religião.
Perguntas para lá e para cá, até que me perguntaram:
- E você é o que?
- Sou umbandista.
E, como em geral é, existe um
desconhecimento do que é a Umbanda então expliquei superficialmente os
preceitos da religião, a forma ritualista. Conversa vai, conversa vem uma das
pessoas me pergunta:
- E que tipo de gente frequenta
centros de Umbanda?
Inicialmente não entendi o que a
pessoa queria dizer. Que tipo de gente?
- Como assim, que tipo de gente?
- Tipo qual é o perfil de quem
vai lá? Qual a raça predominante, grau de escolaridade, profissão?
Entendi o que ela queria saber, a
pergunta dela não era só que tipo de pessoa frequenta, mas que tipo de pessoa
se deixa acreditar por essa religião. O sorriso levemente sarcástico nos lábios
da pessoa reforçava meu entendimento. Confesso que no momento só me vieram a
mente respostinhas rápidas, daquelas que podem e sempre vão magoar. Pensei em
um milhão e meio de coisas em 2 segundos para dizer, por fim:
- Posso te responder na segunda?
Tenho que ir agora.
- Claro.
Levantei-me, disse adeus a todos
e fui embora meditando naquela pergunta. Pensava que no tempo em que frequentei
a igreja católica, no tempo em que frequentei o kardecismo nunca haviam me
perguntado que pessoas seguiam aqueles dogmas, aqueles preceitos. Nunca foi
motivo de curiosidade as pessoas que acreditavam naquela fé e porque deveria
haver com os adeptos da fé umbandista? Fiquei me perguntando que tipo de pessoa
eu sou, afinal também frequento o local. Será que me pareço tão absurdamente
diferente dos demais integrantes do mundo religioso? Cheguei em casa pensando
nisso, dormi pensando nisso, acordei pensando nisso e fui para a gira, o
encontro quinzenal no terreiro, pensando nisso.
Os trabalhos começaram e eu
estava acabrunhada com aquele questionamento, meio chateada mesmo com a
intenção maldosa daquela pessoa, o que será que ela queria provar? Por que tratar
a fé do outro dessa forma? Percebendo meus pensamentos uma das entidades, que
estava incorporada, mandou me chamar. Embora a médium fosse uma mulher, a
entidade que se apresentava era um homem, um senhor de muitos anos. Tinha um
cachimbo na mão, um galho de alecrim na orelha e um olhar profundo. Pediu que
sentasse a frente dele onde havia um banquinho branco. Sentei como ele pediu e
logo o velho veio falar:
- Minha filha não está muito bem
hoje, não é mesmo? Se chateou com as conversas moles daqueles que sempre querem
balançar a fé do outro. Não se deixe abater por quem não quer o bem. Não se
deixe chatear por isso, não baixe seu padrão energético por nada, muito menos
por essa pessoas.
Fiquei perplexa, pensando que eu não
disse nada a ele. E, como se lesse meus pensamentos, me olhou profundamente nos
olhos e sorriu. Puxou uma baforada do cachimbo, pegou minhas mãos, deixando-as
espalmadas para cima, e soltou a fumaça sobre elas. Olhou, olhou, olhou parecia
ler alguma coisa nas minhas mãos abertas e, apesar da minha curiosidade, nada
disse.
- Então, se ela quer saber que
tipo de gente vem aqui... olhe em volta e me diga, que tipo de gente vem aqui?
Virei olhando, ainda em espanto,
para todos os que, como eu, estava sentados à frente de uma entidade. Contando-lhes
problemas, buscando soluções, querendo saber mais a respeito da vida depois da
morte, querendo saber mais do seu caminho na Terra.
- Pai, não sei dizer que tipo de gente
vem aqui. Só vejo homens e mulheres, de todas as cores, das mais variadas
roupas, não sei onde trabalham ou o que fazem. Não sei dizer se tem boa vida
nem mesmo o porquê de estarem aqui...sinceramente não sei o que responder.
- Tem certeza?
- Tenho sim Pai.
- Então eu vou te dar uma
ajudinha – e sorriu levemente – Sabe que tipo de gente vem aqui? – Fiz que não
com a cabeça e já estava aflita com a resposta – Só existe um tipo de gente que
vem aqui minha filha, do tipo que quer ajuda. Do tipo que precisa de apoio, do
tipo que não vai esmorecer até achar alguém que possa mostrar como é o caminho.
Por um momento fiquei anuviada,
quanta simplicidade, quanta profundidade, quanto amor.
- Olha ali, aquela senhora de
muleta. - Me virei, era uma senhora baixa, bastante magra, com os olhos miudinhos,
andando de encontro a uma das entidades - Quando ela chegou aqui não andava, não
falava, vivia em um mundo perdido na própria mente, veio acompanhada da filha. Os
médicos disseram que a senhora não passaria de um mês de vida. Como a maioria
dos atendidos, a filha veio com a mãe por não ter mais opção dizendo que não
acreditava nessas coisas, mas que o importante era a mãe melhorar. A senhora
passou do mês que os médicos disseram, depois mais um mês, depois mais um e mais
um, hoje já fazem bem uns 4 anos que ela vem aqui. Aos poucos ela começou a
sorrir, depois balbuciava algumas coisas, começou a falar, a se movimentar e
hoje já anda com a ajuda da muleta.
Não acreditei de pronto, como ele
poderia saber tão bem daquilo?
- Simples filha, aqui todos
estamos em corrente, vibrando e trabalhando em prol de todos, posso não atendê-la
materialmente, ela não está sentada no banquinho comigo que nem você, mas no
plano imaterial eu a visito e a ajudo.
Fiquei com vergonha do
pensamento, depois de tanto tempo naquele terreiro, convivendo com as entidades
sentindo-as tão fortemente ainda me pego pensando isso.
- Aquele rapaz – virei para o
outro lado e mirei um rapaz alto, forte falando com outra entidade – ele veio
até nós, metade por obrigação imposta pela mãe e metade porque se sentia fora
de controle, bebia demais, vivia em farras demais, estava envolto de obsessores
que só mantinham o ciclo de boemia e ele como não queria ser diferente ficava. Hoje é outro, trabalha, estuda e está noivo daquela
moça ali ô – Apontou a moça – Eles ainda terão uma caminhada bastante longa,
mas quando se tem propósito, ainda mais andando junto com o outro, fica fácil,
fácil. Olha, aquela moça com as duas crianças. Ela vem sentar no mesmo banco
que você está, me lembro bem dela. Arredia, descrente, desanimada, orgulhosa.
Foram muitas explicações e conversas até que ela entendesse os preceitos daqui,
até ver que o mal está em qualquer lugar que se dê espaço. Ela vinha de outro
templo, de outra religião, só veio porque os meninos dela estava doentes de não
dar jeito. Aos poucos ela foi melhorando e com o trabalho aqui os meninos
ficaram bonzinhos em uma semana, sem sinal de dor. Depois do trabalho feito, os
meninos saudáveis, ela disse que iria abandonar o outro lugar e só viria aqui. Sabe
o que eu disse?
- Não senhor.
- Disse que Deus, o Pai de todos,
o caminho de todos, estará em todo o lugar que ele for aceito. Ela não precisa
largar lugar nenhum, ela precisa fazer o bem e amar o próximo. E, é claro, que
ela pode frequentar quantos lugares ela quiser, desde que sejam lugares do céu
na terra. Minha filha vê que pouco importa o tipo? Que aquele que vem aqui, vai
lá? Minha filha entende?
- Entendo sim senhor.
- E já sabe a resposta?
- Acho que sim... – Disse isso
olhando para o chão e com a mão no queixo ele levantou meu rosto.
- É claro que sabe minha filha.
Agradeci, abracei aquele corpo “emprestado”
e voltei ao meu lugar. Fiquei reparando a moça com os dois meninos indo de
encontro ao velho. Que tipo de gente vem aqui?
Na segunda-feira, de volta a roda
com as mesmas pessoas, confesso que fiquei um pouco apreensiva. Será que eu
saberia passar o ensinamento? Conversa vai, conversa vem e a pessoa que
esperava pela resposta me perguntou:
-E aí, já sabe me responder?
- Sei sim, mas qual é mesmo a
pergunta?
- Uai, que tipo de gente frequenta
um terreiro de Umbanda?
- Pensei muito antes de ter uma
resposta e, até agora, não sei se vou te responder como você quer, mas a
resposta é mais simples do que pretendemos. Que tipo de pessoa vai lá? Do tipo
que quer ajuda, do tipo que tem fé, do tipo que vê na simplicidade das palavras
das entidades a luz no fim do túnel. Lá vai o tipo de pessoa que está em
frangalhos e busca com as últimas forças mudança. Lá vai o tipo de gente que
cansou de ser o que é, mas não sabe como mudar a situação atual. Lá vai o tipo
de gente como eu que vê resultados, ouve explicações e consegue colocá-las em
aplicação na vida e se sentem melhor com isso. Lá vai o tipo de gente que
chora, que sente falta, que quer mais do mundo. Lá vai o tipo de gente que se
curou, se melhorou e está feliz por isso. Lá vai todo o tipo de gente que não
precisa ser nada a não ser gente. Lá vai o tipo de gente que tem sangue,
coração, mente, que tem dor, aflição, vontade, que tem amor, provação, mas que
não larga a vida de mão independente da necessidade. Confesso que olhando para
todos naquele terreiro não vejo negros, brancos, amarelos, não vejo pardos, não
vejo ensino fundamental, médio, não vejo faculdade, não vejo carro, não vejo o
emprego...só vejo gente mesmo, do tipo que vive, que chora, que ama...lá só tem
desse tipo mesmo.
E, sem mais a acrescentar, quis
saber se tinha respondido a pergunta. Ela fez que sim e a mesa ficou por algum
tempo estática. Pedi licença, estava na hora de ir, disse adeus a todos e
peguei o rumo de casa. Que tipo de gente? Pensei sorrindo.
Que texto fantástico, mexe com o interior, com as nossas ações, pensamentos e palavras...
ResponderExcluirUma leitura de Sabedoria e de Reflexão.
Adorei.
Marly Portes
Olá, Marly!!!
ExcluirFico feliz que gostou!