terça-feira, 3 de junho de 2014

Como era?



Hoje li seu nome. Demorei a lembrar quem você foi...quem você era? Lembro me pouco agora, foram alguns anos de mãos atadas juntas. Foi uma estadia triste, involuntariamente triste. Era o nosso destino juntos, sempre fora, tristeza mútua e dividida. No fundo era o que gostávamos [mesmo] de compartilhar. A alegria nunca foi nosso forte, pequenos momentos, instantes...Talvez não fosse nada disso, mas a certa idade a memória vem fraca no oceano dos tempos. Só me recordo das lágrimas que as tuas duras palavras e ações me fizeram sentir cair do rosto e tocar a blusa atada ou o peito nu. Não por maldade, você só queria afogar seu ser no meu, suprimir toda a possibilidade de levante que o meu coração pudesse ter, não por maldade, mas por ódio a anarquia que a paixão me impulsiona[va]. Sabias como eu era, impulso e sentimento [será que ainda sou?]. Nunca conseguiríamos nos manter juntos até porque o seu cárcere nunca foi o meu, nunca conseguiu restringir o meu eu. Ainda não entendo bem o que foi estar junto de você, me parece uma névoa, uma neblina, um lampejo opaco do que talvez vivi. Será que vivi? É que a essa altura do tempo já me falta a memória, da única coisa que ainda tenho certeza é a breve possibilidade da morte. Tento recordar, mas não me vem nada. Como era o riso? O toque? O cheiro? Não...nada. Somente os traços sisudos de quem não gostava muito de viver. Vislumbrando as condições de tempo e espaço de minha [breve] vida penso se você...se você mudou. Será que agora entende a importância de estar do lado? Será que sabe fazer o outro feliz? Será que sabe se fazer feliz? Esperando meu café, com bordas de doce de leite, especialidade do Fran's, conjecturo a respeito da sua vida. Te imagino rei, te imagino rico, te vejo feliz com seu orgulho e soberba. Rindo aos quatro ventos contos ilusórios de como eu era um fardo, um câncer a ser extirpado. Não me dói, sinceramente. Me divirto com as cenas mentirosas do que nunca fomos, nem poderíamos ter sido. Por que entrei na sua vida? Sabes como eu era [ou será que sou?] sempre procurando o mítico no real, o ideal no concreto. Por que se há de demorar assim em um pensamento sem fundamento? Oras, porque é o que me resta a essa idade. Deixe ao menos o velho imaginar a vida alheia, há algum divertimento nisso. Te vejo sem medida, bêbado por um bar, a contar os louros das derrotas de toda uma vida. Maltrapilho, vagando cambaleante, pois o bar já fechou. Usufruindo da deliciosa miséria de sentir as culpas suas: por que? por que? por que? Ecoando sem fim em sua mente. Quem sabe talvez sejas um bêbado rico, por sorte do destino. Riu solitariamente na mesa com o pensamento sem sentido daquele segundo, e é o tempo da bela garçonete trazer o café. Quem sabe virou artista em outro país e tem o nome estampado nas capas dos cartazes da rua. Pode ser que tenha se deixado levar pelos "amigos" comuns e se tornado só mais um no acaso do mundo. Mais um funcionário normal, com um bom trabalho, salário mensal, com a carteira assinada e o happy hour garantido. Mais um de tantos que se enganam pela música ruim, pela cerveja, vodca, cachaça gelada. Mais um de tantos que tem a ânsia do mundo guardada no peito, mas que tem um medo ainda maior de não ser "normal". Mais um de tantos que levam uma vida assim: bem compromissado e empenhado em parecer igual e não se sobressair. Mais um de tantos que trabalham, comem, bebem, transam e gozam da aparência de normalidade ideal para o nosso mundo. Essa é a explicação mais provável. A mais chata certamente, mas a mais provável. E..e...e...E assim como veio, o pensamento se dissipou da mente. Provavelmente foi ingerido junto com a pequena dose de café e doce de leite. Parado, olhando a xícara vazia, o doce de leite raspado da borda, tentou ainda segurar aquele pensamento, mas já era tarde, já se foi a digestão. Oh, idadezinha sem vergonha, o que era mesmo que eu estava pensando?
  

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